29.7.08

To be Mestiço or not to be

Imagem: Jason Florio

Achei interessante o comentário de Ruben e resolvi "promovê-lo" a post. Obrigado Ruben.

"Quanto à teoria mestiçagem há muito que se lhe diga. Se partirmos da definição da mestiçagem como uma mistura (genética ou cultural) de povos, então diríamos que Cabo Verde é 100% mestiço, África é 100% mestiça, Europa é 100% mestiça, etc., etc. O que quero dizer é que nunca existiu uma sociedade monocultural, todos os povos, as línguas, as produções humanas como a música derivaram de empréstimos, de misturas, enfim… pureza e monoculturalidade é uma miragem. Vejamos o caso português: os povos que deram origem ao que hoje concebemos como o povo português formam entre muitos outros, os povos indo-europeus, pro-celticas, celtas, visigodos, suevos, alanos, mouros, sem esquecer que no século XVI 10% da população lisboeta era constituída por negros africanos, cujas primeiras remessas (negros guineenses) datam da segunda metade do século XV (algo bem documentado e que muitos teimam em não fazer menção). A título de curiosidade, já no final do século XIX os melhores cantores de fado em Lisboa eram negros e os ditos “mulatos”.


Quero fazer uma outra pergunta: porque é que o filho de um sueco e um norueguês, ou de um nigeriano e um congolês não é considerado mestiço? Só seremos mestiços se formos filhos de um negro e um branco, ou de um negro com um japonês – por exemplo? Então, o que é ser mestiço? No mundo somos todos mestiços.


Na minha opinião, há que reformular essa forma especifica de ver a mestiçagem que não é mais que uma construção social, e hoje, por vezes, com implicações politico-ideológicas. Na nossa terra ela está intimamente ligada à construção da identidade nacional.
Parafraseando-te César: “ mi é africano i tchau”. Ou como diria Virgílio Brandão que diz ser-se africano por “ identificar-se com África e com o seu futuro”. Para quem identifica-se com África dedico-lhes a profunda música “afro na bô” de Hernani Almeida (que pode ser ouvida no myspace do Hernani em http://www.myspace.com/hernani1978) e a celebre frase de Mário Fonseca: “Eis-me aqui África nas tuas entranhas onde afinal nunca saí”."

Miguel Barbosa disse para esquecer o debate, que não acrescenta nada. Diria que é preciso debate, não para acrescentar, mas para subtrair certas ideias das nossas cabeças. Se o tema fosse pacífico não necessitaria de debate; mas não é.

24.7.08

To be black or not to be

Imagem: Jason Florio

Uma primeira interessante pergunta apareceu nos comentários: ser preto é bom ou mau? Esta pergunta pode desencadear uma infinidade de outras perguntas, a começar por esta: porque é que se põe esta pergunta? Ser branco é bom? E os amarelos? E os vermelhos? E os morenos? Ou então: porque é que existe uma correlação bom/mau, preto/branco? Colonialismo?

Das coisas mais chocantes que já li sobre Cabo Verde era de que: 70% da população CV é mestiça, 28% é negra e 2% é branca. Agora digam-me: que raio de ciência demográfica é que fez esta medida? Em que ponto do espectro de cor um mestiço deixa de ser mestiço? A população de Lisboa vai deixando de ser europeia, porque cada vez mais tem mais mestiços?

Ser africano é pertencer a uma "região cultural". A nossa Cultura, como todas no mundo, é algo de inédito, como a impressão digital, tanto é que é a Cultura que marca os limites de um povo. Agora, toda a Cultura se agrupa em Culturas similares. Por isso que as pessoas das Canárias são europeus, apesar da localização geográfica. Por isso que somos africanos, apesar da localização geográfica.

Tenho dito.

23.7.08

A coisa vai ficar preta

Imagem: aqui

Como disse o João Branco, sempre há um aproveitamento positivo, da pior situação.

O problema da luz invocou-me as cores escuras e daí senti-me inspirado para falar de África, o nosso continente. Os próximos dias vão sair uns posts negros, com direito a racismo e tudo.

Que tal falar de África? Ou seja, que tal falar de coisas viscerais? Coisas que estão agarradas ao nossos ossos, músculos, nervos, veias e neurónios. Porque, para mim, já dando o tom, somos africanos e tchau! Falemos desta constatação pra frente.

Me aguardem.

15.7.08

Trevas

A cidade da Praia não tem electricidade. A situação já roça, aliás, não roça, esfrega descaradamente o ridículo!

Visão do inferno

Image: Basquiat

Uma da manhã. Desligou a ventoinha e a luzinha do repelente de mosquitos, os terríveis sinais de que foi a luz. Com o calor terrível que está na cidade, o quarto fica logo insuportável. Se escancarasse as janelas, seria comido vivo por mosquitos. Mas, mesmo de janelas fechadas, a suar como um porco, os diabinhos, que estavam esfomeados e sem poder repastar do meu bom sangue, atacam sem piedade. Tento abaná-los. Luto na escuridão contra um inimigo invisível. Aplico valentes palmadas no meu ouvido. Tá calor. Fico irritado. Não posso. Levanto-me, procuro o meu candeeiro a gás e alivio um pouco a escuridão. Queimo desesperadamente folhas de eucalipto, a ver se as bichas se intimidam. Que nada! Continuam. Auto-flagelo-me: auto-bofetadas; auto-palmadas. Fico irritado. Fui chutar uma almofada e acertei o dedo no sofá. Porra!!!!...Vagueio dentro de casa. Fico com sono. Vou deitar. Tá calor. As bichas não desistem. Auto-flagelo-me…

Um luta inglória e ridícula, até ao amanhecer. Hoje estou um cão raivoso. Se fosse um thug, saía à rua e quebrava todos os vidros de todos os carros, a ver se aliviava o ódio!

Ciclo infernal I

Imagem: Van Gogh

Metade da cidade da Praia não é urbanizada. Metade, na melhor das hipóteses. E nem existe uma esperança que a situação vá melhorar. Metade da população não tem água, esgotos e luz domiciliada. Metade da população rouba a luz. A rede de distribuição de electricidade é um caos: a sobrecarga é demais; os erros de instalação levam frequentemente a situações dramáticas; há consumo e não há pagamento para esse consumo. Ou seja, a empresa não tem receitas a condizer com a produção. A empresa, não tendo receitas, não faz uma correcta manutenção aos equipamentos e nem tem dinheiro para o combustível. Resultado: a cidade não tem electricidade em condições. E nem existe uma esperança que a situação vá melhorar.

Ciclo infernal II

Imagem: Francis Picabia

A cidade da Praia é um grande parque de motores a diesel, de pessoas, empresas e instituições a tentar sobreviver à falta de luz. Todos têm um custo adicional de aquisição de combustível para esses motores. Para todo o Estado, o consumo deve ser impressionante. Ou seja, muita pressão sobre a despesa corrente do Estado, que já tem que pagar funcionários, financiar os luxos dos dirigentes, comprar uma tonelada de consumíveis e dar banquetes. Pressão sobre as despesas significa ter que arranjar receitas. E que tal uma taxa para a manutenção das estradas?

No power

Imagem: Francis Picabia

Guvernu ka tem pauer

(tradução:)

O Governo não tem poder

(ou:)

O Governo não tem energia

(ou:)

O Governo não tem competência



14.7.08

Dignidade II

A situação das pessoas que se lançam ao mar, em pequenas embarcações, tentando desesperadamente chegar à Europa, morrendo de desidratação e fome, não me sai da cabeça. A forma como o mundo tem lidado com essa situação e a forma como nós, caboverdianos, temos lidado com isso, não pára de me fazer uma grande confusão. Enquanto humano, desilude-me a (falta de) humanidade da questão. Enquanto caboverdiano, envergonho-me do tratamento que é dado ao assunto.

Este foi o mote para a minha crónica n'A Semana, do dia 11 de Julho, em que escrevi uma torrente de emoção e talvez por isso não tenha saído uma coisa muito clara. De todo o modo, a mensagem é simples: da mesma forma que a ecologia, a energia e o preço dos cereais é um problema de todo o mundo, também a miséria é. O desrespeito aos direitos humanos na China preocupa a todos; também preocupa Guantanamo; preocupa o armamento nuclear; e deve preocupar a situação incrivelmente degradante por que passa alguns países africanos e as loucas consequências que daí advém.

Li na imprensa: "...não temos condições logísticas e humanas para tratar dessa gente..."!!! Estamos à espera de quê para ter condições? Ou será que achamos que só vamos cuidar dos nossos condomínios fechados, alto standing, para o mercado europeu? Ou será que não consideramos que seja um problema que valha a pena cuidar? Ou será que de repente não somos mais cristãos? Ou será que não subscrevemos a Declaração Universal dos Direitos Humanos? Ou será, pior ainda, subscrevemos essas tretas, porque fica bem na figura?

O problema é de nós, humanos, todos. Principalmente de nós, que somos africanos.

5.7.08

Dignidade

imagem: www.lost.art.br

Senhor Doutor Ministro da Cultura, demita-se!

Li, com um misto de angústia, frio na espinha e desilusão, o artigo d'A Semana do dia 4 de Julho 2008, artigo esse já de per si com um título preocupante ("Governo possível entre os equilíbrios existentes"), onde se falava das mexidas na equipa do Governo, das novidades, dos desafios, dos grandes problemas, das prioridades, das grandes preocupações, onde o jornalista foi andando de sector a sector analisando o que cada sector padece mais - que a situação económica é complicada, que é preciso gerar emprego, que a guerra dos professores e dos sindicatos não acaba mais, que é preciso reforçar a acção social, etc, etc - e no sector da Cultura...NADA!!!...Absolutamente nada! Nada de políticas culturais, nada sobre a língua nacional, nada sobre o ensino da nossa história, nada sobre o financiamento da Cultura, nada sobre os direitos de autor, nada sobre o património, nada sobre os espaços culturais, nada sobre a arte, nada sobre a sociedade e os seus valores. NADA! Isto para mim só tem duas explicações possíveis: ou o seu ministério não tem projecto algum, ou os tem e não sabem defendê-los junto da sociedade e da Comunicação Social.

Peço a sua demissão Senhor Ministro pelas seguintes razões: enquanto cidadão, patriota e orgulhoso da minha Cultura, o Senhor me desilude; enquanto pai preocupa-me que a minha filha cresça e encontre o mesmo vazio no ensino da história e das artes; enquanto agente da Cultura, sinto-me completamente desapoiado pelo seu (nosso) ministério; enquanto artista, não consigo perceber o Mecenato Cultural, a política de formação para a Arte, os incentivos, os prémios, as medalhas e os louvores distribuídos por aí, pelo seu (nosso) ministério.

A admiração que eu, desde adolescente, que tinha por si!...

4.7.08

Gente abusada!

Imagem: "Kondominiu abertu", da série Praia.Mix
No cumprimento matinal habitual, mamã passa-me uma mãozinha na cabeça, inspecciona-me de alto a baixo, naquele olhar só de mãe. Sinto-me sempre um fedelho nesse gesto, mas é uma bênção ver a a mãe todos os dias. Trocamos assuntos rápidos. Nessa manhã ela estava furiosa:

- Ontem vi na televisão, o problema das casas clandestinas. Quando é que esse pessoal vai aprender!? Só visto como as pessoas constroem nas encostas, dentro das ribeiras, umas em cima das outras...! Quando que esse pessoal vai aprender? Esse pessoal não se educa: sujam a cidade, desorganizam a cidade...É preciso educar esse pessoal. Isto não pode continuar assim!


Pois mamã, isto não pode continuar assim. De resto, este pessoal só tem uma partinha da culpa. O pessoal precisa morar, dormir, comer, defecar e deitar o lixo nalgum lugar. O pessoal precisa viver e fazem-no como podem. É bem certo que o pessoal (nós) precisa de civilidade, mas como será isso possível, sem uma política de habitação, sem infraestruturas de saneamento básico, sem acesso à água e todo o resto? Como será isso possível, numa sociedade tão injusta? Mamã, é fácil chutar o miserável e culpá-lo de ser miserável. É fácil continuarmos a culpar o pessoal de sujar e desorganizar a cidade, mas o problema é bem mais profundo que "o pessoal". Para quando uma verdadeira cidade?

3.7.08

Seca

Image: Juan Miró
NÃO! FALTA D'ÁGUA NAAAÃO! Abri a torneira e não saiu um pingo d'água. Pânico! Sofro de horror de falta dágua:

Tirem-me a electricidade - esqueço a televisão, dispenso o frigorífico, não trabalho mais no computador, resigno-me à luz da vela - mas não me tirem a água que cozinho.


Tirem-me o dinheiro todo - não reclamo mais dos impostos, da taxa mensal da televisão e de todas as outras taxas absurdas- mas não me tirem a água do chuveiro.


Tirem-me o carro e todos os outros luxos que possa ter - vivo miserável, se for o caso - mas não me tirem a água do autoclismo.


Tirem-me todo o mínimo conforto, mas não me tirem a fonte da vida...Isso não posso aceitar. Não há justificação possível. Não há compreensão possível. Nem se explica pelo SAHEEL, porque já nem somos isso.


...

E Deus, que não deve ter gostado da minha falta de fé, mandou hoje um chuvisco, a querer demonstrar que afinal Ele é Pai sim. Pelo menos é um gajo cool.

1.7.08

Deus é pai

Imagem: Alexander Rodchenko
Nestes tempos de crise, de Governo de faz-de-conta-que-tudo-anda-sobre-rodas, do silêncio dos intelectuais desta terra, que deviam estar a pôr ao serviço do país os seus doutos pensamentos, os camionistas da capital irromperam-se pela cidade, com um sonoro buzinão, a reclamar da vida:

"Queremos mais emprego". Bravo! Grande frase. 20% da população com força para trabalhar, sem poder trabalhar, é um problemão. O desemprego é pai de filhos delinquentes.

"Abaixo a fome". Epá! Abaixo sim senhor. Que esta palavra não seja pronunciada por nenhum filho desta terra, ainda por cima uma terra semi-europeia.

"Cabo Verde é de todos nós". Quem pôs isso em causa? Vá lá, gritemos os gritos certos.

"Gasóleo e gasolina estão caros". Caros?! Que modéstia. Um par de olhos de cara não enche um tanque de combustível.

"Abaixo o Ministério das Infraestruturas". Pessoal, essa não apoio. Não é com demolições que vamos resolver a coisa.
E nem percebi porquê o das Infraestruturas.

"Abaixo José Maria Neves"...oh, oh, oh! Essa também não. O homem já é baixinho, botá-lo abaixo só servirá para lhe retirar a visão do horizonte dos problemas. Nada de "abaixos"; a palavra tem que ser "acima".

"Deus é pai". Isto pode até ser uma solução para os jovens violentos, que são violentos porque não têm um pai; Ele poderá colmatar essa situação. Quanto ao país em si, Deus não vai ajudar, nem que se ponha a mão, porque os problemas terrenos criamos nós e cabe a nós resolvê-los, com as nossas próprias mãos e as nossas próprias cabeças.

Um bem-haja para os camionistas, que insurgiram-se contra o (clima de) silêncio.

Violência descodificada

Imagem: Basquiat
Ontem (30/6/2008), ouvi pela rádio: um homem, que não percebi chefe de quê, com aquele ar pomposo habitual, com o palavreado tipo "portanto", "prontos", "consequentemente", anunciando que tinham descoberto as causas da violência juvenil. Um estudo, encomendado pelo Ministério da Justiça, concluiu que a violência juvenil deriva de um quadro social de desarticulação da família. A violência juvenil é mais incidente em famílias monoparentais e pobres!...

EUREKA!!!

Como solução para a problemática, o estudo aconselha a efectuar outros estudos para estudar uma solução para a problemática.

Dias como o de ontem dão-me esperança e fazem-me pensar que vamos sair da cepa torta.