30.11.09

Segunda-Versão

Aguardou que tudo se acalmasse, a televisão, os pratos, os meninos, os carros que passavam na rua, aguardou fingindo dormir, rezando por dentro, a pedir a deus que a perdoasse o pecado ao aceitar aquele pequeno pedaço de papel, que viu de soslaio tratar-se da palavra satânica, mas que não teve forças para esconjurar quem assim a pôs em contacto com o diabo, e em vez disso, como que arrebatada de paixão, guardou o pequeno anúncio, despachou as horas do dia, fez o almoço, deu de jantar à família, lavou a loiça, deitou-se cedo e aguardou que tudo se acalmasse. Enfim só os roncos da casa, pode tirar o papel, fazendo ainda uma pausa para avaliar o impacto junto a deus de uma tal incursão, assegurando-lhe que continuava devota e temente, mas que talvez ele quisesse que ela procurasse alternativas, que talvez ele não se importasse com um certo grau de desvio, assim a sua vida fraca e desesperada a obrigava. Leu.

MESTRE CURANDEIRO, que pode resolver todos os seus problemas seja qual for, tais como: encontrar trabalho, viagem, visto, inveja, pressão alta, quer ter filhos, dor de coluna, homem com problema de tesão, faz mulher voltar para homem que separa e o contrário, cura mulher com problemas vaginais, mulher que não consegue sentir prazer com homem, venda de propriedades, aumentar as vendas nos seus negócios, separação de amantes do seu marido, problemas espirituais e quaisquer outros problemas na sua vida…Resultado em pelo menos em 24h.

As palavras tesão e vagina irromperam-lhe um calor avassalador nas faces, sentiu-se húmida sem controlo do corpo, precipitou-se para o quarto de banho, depressa antes que pudesse estar possuída de loucura, chorou, lavou-se, continuou em cascatas de lágrimas para mais uma boa metade da noite, lamentando a sua sorte, a ausência dos odores do seu homem na sua pele, os odores de outras mulheres que era obrigada a respirar tantas noites seguidas, chorou até de madrugada. Mal pode dormir, levantou-se antes de todos como sempre, fez as preces, o pequeno-almoço, deu de comer a marido e filhos, que partiram para as suas vidas, sem sequer reparar que os seus olhos eram buracos ainda mais cavados.

29.11.09

Sabbath

Como é que uma pessoa pode descrever um espectáculo de Paulino Vieira? Vamos lá ver se encontro as palavras.

Tudo em Paulino é extra-ordinário, ou dito ao contrário, nada nele é ordinário, comum. Antes de mais, estamos a falar de um gigantesco talento musical, que pode tocar qualquer instrumento com a maestria que os solistas o fazem, de um fino compositor e o nosso MAIOR arranjador, ou talvez para ser modesto, o meu maior arranjador de música popular caboverdiana. Ontem, dia 28 de Novembro (este dia vai fazer eco na minha cabeça para sempre), ouvi arranjos, que não tem nenhuma outra comparação em Cabo Verde. Além do mais, a banda eram cordeirinhos guiados por este maestro-pastor: 8 músicos, 8 grandes, entre os quais, Bau e Voginha. Simplesmente lindo, mágico.

Bem convenhamos, o espectáculo cansou-me pra caramba, que não é todo o dia que uma pessoa aguenta aquelas cadeiras vergonhosamente desconfortáveis do Auditório Nacional, por 3 horas! E eu detesto parlapiação em espectáculos musicais, Paulino fala metade do espectáculo. Mas, quem disse que não é preciso sofrer para ter o privilégio de ser presenteado com cada uma das composições que ele, Paulino, escolhe com peso, medida, textura, volume, cor e outros atributos mais?

E por fim, o carácter desse homem, um extravagante por natureza. O meu coração encheu-se de alegria por vê-lo ontem tão incrivelmente feliz, a tirar pulos no palco, a rodopiar e dançar como um louco, a fazer acrobacias com um cabo de vassoura (sim, cabo de vassoura!), a contar piadas, a abraçar os amigos, a agradecer a todos, que como se adivinha, o ajudaram a sair das trevas que ele atravessou (ou atravessa). Da última vez que vi Paulino num palco, era um animal perseguido por fantasmas, tinha os olhos como dois buracos negros, falava de desgraça, ria pouco, embora mantivesse intacto a sua pureza musical. Ontem vi um homem diferente e faço tantas forças que ele possa viver assim feliz para o resto do seus dias.

És uma inspiração Paulino. Que o Universo cuide de ti.

27.11.09

Vocábulos

Cloaca
Lugar onde se deitam as dejecções

Já viram a quantidade de coisas que cabem dentro deste vocábulo?

25.11.09

Quinta-Essência

Um deputado manda o outro aquela parte, o outro responde com ameaça de porrada, os dois andam por ali a engalfinhar-se, a imprensa e os coleccionadores de baixaria tratam de espalhar o acontecido pelos quatro pontos cardeais, não se fala de outro coisa nos cafés. Olvidamos completamente detalhes como, tratarem-se de deputados da Nação, por definição representantes do Povo no mais importante órgão de soberania de um Estado Democrático, que é a sede da Legislatura, são cidadãos respeitáveis (?), profissionais, pais, avôs.

Em vez de nós nos indignarmos em bloco com os dois malandros, andamos a tomar partido para uns e para outros. Há momentos na vida que nem família tem razão. Mas por cá, esse género de coisas é quintessencial, dá uma repintada na monotonia dos dias, acorda-nos do enfadonho das obrigações, atiça os selvagens que dormem dentro de nós, geram um mar de piada, coisa que mais o crioulo gosta de fazer, contar piadas. Eu não achei piada. Os dois deviam ter vergonha de ostentar os títulos que ostentam. E nós devíamos ter vergonha de não ter vergonha de nada, nem de lixo, nem de cocó, nem de cólera, nem de dengue, nem de deputado baixo nível.

Quarta-Parede

Há anos que tento psicoanalisar-me a ver se descubro as raízes do meu nervosismo que cresce com a aproximação do Natal. Talvez se explique pelo facto de o considerar um tremendo de um embuste, ou muito provável é que me irrite solenemente as correrias às compras e as enxurradas de dinheiro que, por mais que se evite, acaba por extraviar-se e invariavelmente resulta em diarreia e desarranjos digestivos, ou de certeza é que me chateie um determinado novo-riquismo deficitário de autênticos valores de família, amizade, verticalidade de carácter e observância de princípios.

Seja qual o factor determinante por este sensível incómodo natalício, certamente também estarão incluídas as lembranças de outros natais, quando a família devia estar unida e não estava, ou os diferendos entre as pessoas deviam estar sanados e não estavam. Em vez disso tratamos de nos esfalfar para conseguir a que preço estiver, aquele bacalhau que vem lá da Noruega, para depois ganhar acréscimos comerciais em Portugal, para finalmente chegar aqui. Nesta altura as importações do país, já de si graves, devem disparar para níveis próximos do ridículo.

É também o tempo que me impressiona, sempre impressionou desde menino, como os pobres, miseráveis, doentes e tristes, ficam ainda mais expostos na sua má sorte e deprimidos, mais à margem que ficam de uma competição com capa de fraternidade e amor. Juro que tenho uma raiva estrutural pelo Natal.

Mas também sou pai e a porca torce o rabo. À medida que a minha menina cresce e passa da ignorância total em relação a essas matérias, ao fervoroso desejo de ter coisas, sinto-me dragado para esta feira de vaidades, impotente, como quem não pode lutar contra correntes marítimas fortes. Involuntariamente, através do mais que legítimo desejo dos filhos, que não é mais a compilação dos nossos próprios desejos, perpetuamos o sistema, como animais que se enfileiram para um sacrifício, ignorantes do seu destino.

Natal é o tempo em que o faz-de-conta eleva-se ao quadrado, ao cubo. Cada um deve arranjar formas de demonstrar a todos, que está de perfeita saúde financeira, quanto mais enfeites melhor, que se rala pela união da família e da sociedade, nem que isso tudo se esfume logo depois.

24.11.09

Serviço de pensar temporariamente desactivado. Por vezes é preciso sobreviver.

Aos amigos a promessa de rápidas melhoras de dignidade de vida e retorno à normalidade. Até já.

20.11.09

Sexta-Capital

A Semana saiu cedo esta semana. Cristina Duarte na manchete. Eu que sou fã incondicional da Ministra, até porque é uma bela mulher, vou ler direitinho a entrevista. Para mim é um dos poucos governantes que trabalham a sério e, capital, fala a sério, não escondendo rotos e valorizando devidamente o seu trabalho. Quem já teve o previlégio de trabalhar com esta senhora sabe que, defeitos lá tem como todos, ela é metódica, marrona, característica essencial para quem quer vencer desafios difíceis, escuta os que estão na ponta das inovações e pessoa de uma grande cultura. Quem disse que berço não conta?

A capital volta às suas actividades à medida que os doentes se recuperam e desvanece o, exagerado, estado de pánico. Assim, de novidade mesmo é o festival Faxi-Faxi que vai acontecer na Praia, que vai dar mais uma ajuda no audiovisual deste país. Tenho dito, tenham atenção no audiovisual, que vai dar que falar por cá, pelo menos assim espero. E que grande novidade é essa de Paulino Vieira na capital, acompanhado de, pasmem, Tcheka, Hernáni, Bau e Voginha. Mas isso é um festival!

Tremi de alegria pela exposição de Manuel Figueira que aconteceu em S.Vicente, por razão tripla: porque é o regresso de um dos maiores, senão o maior artista-plástico caboverdiano da actualidade a exposições em sua terra; porque ele, junta com a minha heroína Luísa Queirós, despoletou todo o meu sentido arte visual; porque a galeria é de um dos meus compas de infância e outro magnífico artista-plástico, Alex. É bom que grandes exposições como essas aconteçam, para que os que iniciam como nós, se ponham no devido lugar. Para os que acham que estão por aí a fazer arte e fazem cocó, permitam-me este arroto. Para quando Manuel Figueira, em pompa, de novo na capital?

Hoje ainda não tá no clima certo para a costumeira cerveja de sexta. A cidade ainda ressente-se. Tá completo mais um ritual, eterno, de iniciar e terminar semanas. Bom FDS.


Quinta-Essência

Vai passando o susto da Dengue e, afinal, não precisa de preocupações maiores, bora lá relaxar com isso de limpar. Continuo a ver nas mesmas varandas das mesmas casas pseudo-chiques, porque de chiques só tem a pretensão, a pendurar os seus saquinhos de lixo na cerca da casa ou tão discretamente enconstada ao portão. Lixo em si não dá Dengue, o que dá é a mentalidade de, o problema não é bem comigo, é mais com os outros, que dentro da minha casa tá limpa, fora de casa já é problemas dos outros. É assim a nossa maneira de ser, passa o susto, volta tudo ao normalinho. Já se esqueceram que no ano passado morreu mais gente de Paludismo que este ano morreu de Dengue? Já se esqueceram da Cólera? E o que mudou radicalmente nas nossas atitudes e acções? Nada! Uma certa estupidez faz parte da nossa quintessência.

As duas organizações do nosso coração, os dois partidos, preparam-se para se bloquear em mais uma questão importante para o país, como é o Orçamento do Estado. Já ninguém fala da Reforma da Justiça, que tantos sustos como a Dengue nos causou num passado bem próximo. Ou a Revisão da Constituição, que dizem que é a nossa lei fundamental, que já por aí tá explicado o nosso atraso, porque não há meio de se renovar. Entretanto a polícia matou um jovem, em "acção defensiva". Mas quem se rala com a morte de um jovem em Casa Lata?! Compreendam que a polícia poupou esforços numa perseguição desnecessária e meteu bala na nuca do jovem, fosse thug ou não, isso depois vamos saber. Mas tão a ver petições a exigir o fim da violência policial? Que nada!, morando em casa lata, é muito provável que seja um thug e, se calhar, como disse o Ministro Lívio Lopes, é uma acção normal de combate à delinquência juvenil. Pois, é dessas "normalidades" que vamos construindo um belo lugar para viver.

Lembrei-me que cada bairro podia ter uma associação...Que nada, esqueçam este delírio pateta, bora lá cuidar do sofá para sentar a nossa bundinha crioula malandra.

19.11.09

Quarta-Parede

Furtado é um crápula!, rasgou este raio a calmaria da tarde na esplanada. Que dizes, mulher? A esplanada é a proa de um barco em pedra. As amigas pararam de súbito a música que faziam tilintando o gelo nos copos de whisky, não repararam que ela começara um choro miúdo, perdidas que estavam na distância do horizonte. Que dizes, mulher? Que Furtado é um crápula, agora em pingos maiores, um porco, uma fraude de trinta anos este meu casamento, que não posso mais, lágrimas torrenciais! Não repitas asneiras, mulher, Furtado é um homem bom para ti, Não é, deve amar mais as cadelas das amantes que eu, as ondas batiam com violência em baixo nas fundações da esplanada, rolando os calhaus em rufar alto, ela abria-se em prantos, nunca antes ouvidos. Devo terminar com esta condição de não ser mais mulher, soluços secos. Não sejas burra, amiga, tens a vida que nenhuma de nós teve, avalia bem. É amiga, pensa bem. Pois, pensa bem, essa deve tar rebolando-se de contentamento, tempos há que noto que arrasta as duas asas para cima do meu marido, a cabra. As decisões não se tomam a ferver, pensa que tens mais futuro a viver que passado vivido, aliás do passado nem guardas grandes alegrias, tens agora uma boa vida. Furtado cuida mais do carro que cuida de mim, voz fina. Pára com tolices, mulher, olha para ti! Um estalo que lhe estancou a choradeira, o resto da água corria-lhe pelos olhos morridos, cara abaixo, nas inexpressivas faces, secando-se de seguida ao vento, as ondas, os calhaus, retornaram ao seu rufar pendular. Amiga, nenhuma de nós viveu os sonhos de meninas, nem amou os homens de revistas, nem se deitou em lençóis de seda. A vida reserva-nos dificuldades e Deus sabe as dificuldades para darmos de comer aos filhos, se permitir um pouco de conforto.

Meteu ar no peito, secou com as mãos o molhado na face, na fronte, tirou ar, as palavras das amigas flutuavam como cantigas de embalar, respirou com calma, da bolsa tirou um pequeno espelho, pente e batom, ajeitou-se, os lábios eram de novo tinta brilhante, endireitou-se, alinhou as mamas, era de novo a mulher ornamento que sempre foi. Ao pegar no cartão do banco para pagar a conta, gesto repetido inconsciente, e as chaves do carro, prendas de Furtado, o sol tornou a brilhar no seu céu, Que tontice a minha! Recolocou o sorriso discreto de dona de si, voltando-se para as amigas, com o ar de decisão que lhe conheciam, e ordenou, Vamos?

17.11.09

Terças

Brama
Arrumou o biquini no carry-on, com a mesma excitação de criança que arruma o caderno na mochila para o primeiro dia de aulas da vida. Ganhou uma bolsa de estudos para o seu doutoramento. Centenas de países por escolher, sentiu-se atraída por Cabo Verde, porque leu, ouviu, contaram-lhe da boca dos próprios caboverdianos imigrados na sua cidade, as virtudes de viver em Cabo Verde, ainda mais tratando-se de moça nova, com os cartuchos do amor ainda plenos, viçosa, belíssima como era Júlia. Ia viver para umas ilhas, mar e música por toda a parte, gente sorridente, calma como a própria brisa, um país em paz, reputado pelo seu desenvolvimento, terra onde cresceu o grande ideólogo, que Júlia já conhecia por estudo até os hábitos mais íntimos, Amílcar Cabral. Abandonaria a vida entalada em filas, elevadores, subterrâneos e autocarros, para enfim ter um pouco de sossego para os estudos, a grande dedicação da sua vida.

Vixnu
Aterrou com o sol a desferir raios no asfalto e carros irritados apertando-se na estrada, trocando furiosos apitos e palavras ácidas. O condutor do seu táxi, sem muito se importar com a presença delicada da moça, mandava a sua parte de gritos para a rua. Branca, foi a primeira coisa que lhe chamavam em todo o lado, caso não suficiente para lhe tirar o sorriso e os bons-dias que distribuía sempre. Foram dois dias até ser apresentada nos rapazes interessantes e nas meninas que tinha que conhecer. Em breve já estava no circuito dos bares e da moda que se instalou de se sentar ao luar na praia, onde se acendia uma fogueira e charros. Conheceu a vida de todos em pouco tempo, os cornos, os cabrões, as putas. Rápido abandonou o circuito para se refugiar em bares menos povoados, lendo os livros que tinha que ler para o trabalho. Deixou de frequentar as praias por insistente assédio de tudo quanto era homem, que julgavam que moça linda assim, só na praia, precisava de conversa. Foi roubada duas vezes no apartamento que lhe calhou no meio de um casario informe, onde também faltava luz dia sim, dia não, não tinha água sempre e frequentemente arrebentava a fossa em frente. Mantinha o sorriso. Que terra não tem problemas, o próprio dela morria gente a toda hora de assalto e pessoas passavam a maior das dificuldades. Respondia sempre com grande sabedoria das ciências sociais, É um processo histórico, são dinâmicas de toda a sociedade e a vossa tem muitos aspectos positivos, É um país em paz, reconhecido no mundo todo, um exemplo em África.

Shiva
Tiraram-lhe dinheiro a mais da conta na última transacção da caixa automática, estava ela no balcão do banco pela quinta vez a tentar demonstrar que havia uma irregularidade, insistindo com o moço do balcão, que abanava compulsivamente a cabeça em não, que a irritava aquele abanar, mais explicava, mais o moço abanava negativamente a cabeça, mais a irritava. A menina de porcelana estraçalhou-se em cacos, de fúria contida, de acumulação de desaforo. No lugar do sorriso habitual suave, arreganhou os dentes, deitou fogo pelos olhos, de ruga fendida no meio da testa, descarregou a ira para cima do moço que, pobre, involuntariamente ouviu todo o tipo de considerações, sobre a incompetência dos serviços, a ineficácia dos horários e dos prazos, a péssima cara dos atendedores públicos, o atraso, a moleza e os demais defeitos, de como se arrependeu de um dia ter apanhado o avião para aqui, que regressaria imediatamente, que nunca mais voltaria, desejou venenos e infelicidades para o país, rasgou os modos de colégio, de mão na coxa e a outra em riste, arrebentou as costuras do decoro e da elegância. Depois desapareceu

16.11.09

Segunda-Versão

Foi quando percebi que na política, uns sentem e outros a praticam. Parei de bebericar o capuccino, hábito gostoso vendo televisão, como chá, vinho ou pipoca. Parei de escutar os ruídos da casa, rádio, frigorífico, e da rua, carros, buzinas, gente, para me dedicar de plenos sentidos à televisão. É quando acontecem desastres ou atentados, ou como nesse dia, pela primeira vez, Octávio, companheiro de anos distantes, agitava-se dentro da televisão, falando num comício do partido. Não que fosse inabitual aquela tonalidade apocalíptica de discurso político, é que não havia possibilidade nenhuma de identificar aquelas palavras com o familiar camarada de sentar o rabo numa escadaria do nosso bairro, a tecer considerações sortidas sobre tudo o que ocorresse, sem a mínima preocupação de ligar efeitos, causas ou consequências, valendo só a passagem do tempo. Octávio, na televisão, em comício de partido, falava como os outros falam, de tortura, monstros, elevando a voz e cerrando os punhos, rematando as frases com murros no púlpito, recebendo em troca histéricos aplausos, apupos. Faz pausas para se ajustar no fato, que não teve tempo de encontrar gravata apropriada e calhou aquela de bolinhas, limpa charcos de suor que lhe inundam a cara e, na diminuição do frenesim do povo, retoma com igual ferocidade verborreia, reactivando os ânimos, os aplausos, apupos. Lista sofrimentos que teve na vida, sem que em instantâneo flashback eu pudesse descortinar o momento histórico de tais tormentos. Antes da escola, fomos inocentes, comum em putos. Na escola aconteceu-nos participar em organizações juvenis, que tempos depois, vim a saber, lavavam cérebros, e nas paredes, quadros com nomes, depois vim a saber, eram os lavadores de cérebro. Nada mais que as excitações das visitas de estudo, as excursões ou as assembleias de brincar de discutir a política. No liceu, o cérebro deslocou-se mais para baixo e tortura mesmo era amor não correspondido. Depois do liceu, cada um partiu para um lado e reencontrávamos nas férias para tortuosas e quentes noites de paródia. Não encaixei as assombrações que Octávio repetia de voz trémula, choro quase.

No dia seguinte, a tarefa era de topo de agenda, fui vê-lo, sem delongas circunstanciais ou desnecessários preliminares, perguntei-lhe, Que palavras eram aquelas, amigo? Onde foi parar as nossas dissertações sobre a justeza das ideias e o comedimento das acções, os teus sonhos, pátria e utopias? Sem se perturbar, de pé, sério, esperava-me já diria, encolheu os ombros em sinal do mais patético dos óbvios, disse-me, Acabou a brincadeira, amigo, entrei na política.

13.11.09

Sexta,Capital

Sociedades não se medem em termos absolutos, pela razão que há pessoas que são mais que uma unidade, são muitos em um. A dificuldade é que “muitos” não é um número e daí não se saber ao certo qual a diferença que uma pessoa, que é muitos em um, faz. Mas sente-se. O país está a meio-gás, não porque metade da população está de baixa, mas porque pessoas e projectos bem identificados estão de baixa. Não porque se abateram, mas porque fogem. Vão para onde supõem estar seguras e confortáveis. O país está a meio-gás porque tá furado aqui e ali.

Cancelam-se bienais, viagens, adiam-se projectos. Entretanto Raiz di Polon perfaz 19 anos, bonita idade, e oferecem um ensaio aberto hoje, em sua sede. Apareça quem quiser. Entretanto nós os de cá, que não fugimos, ou não temos onde fugir, ou não queremos fugir, aguentamos as pontas, suportando os mesmos asnos e contentando-se com as mesmas pessoas e natureza. De todo o modo fugir para onde? Para onde haja gripes A ou outras bizarrias feitas em laboratórios? Para palcos de guerra? Para países onde já não somos mais bem-vindos? Onde se cultiva a intolerância?

Ontem minha amiga dizia que, o mundo fatalmente entra em fases de estupidez generalizada, aumentando a tensão até limites do insuportável, rebentam-se guerras e conflitos, para depois retomar-se os caminhos da normalidade e razoabilidade. Pois parece-me que o mundo anda nesta fase da estupidez generalizada, com modelos económicos que já pareciam naturais a colapsarem, com mais e mais doenças a aparecer todos os anos, com as abismais diferenças entre países e pessoas, mas sobretudo com a falta de vontade de nos entendermos, cada um a querer fazer vingar a sua lógica, ou achando arrogantemente que a sua lógica é A lógica. Não há onde fugir. Lutemos. Vão à vossa sexta, bebam a cerveja de praxe, mas saibam que não é tempo de relaxar.

12.11.09

Quinta,Essência

Está tudo doido em torno, gente doente, com medo dessa doença nova odiosa, de outras que se vem juntando, de outras que já estavam e progridem, tais como os que matam de coração, de comilança, de gordura, de falta de higiene de vida. A cidade está sacudida. Costumávamos brincar que Deus é caboverdiano, face a perigos que nunca davam em nada, casas podres que não caiam, epidemias que espreitavam e não aconteciam, face a toda a casta de desleixo sem consequência. E agora, que epidemias acontecem, há mortes e centenas de doentes todos os dias, casas caem, a chuva, tradicionalmente amiga, leva na enxurrada uma vila inteira, turistas cancelam visitar aqui, empresas vão à falência, há mais famílias no desemprego, estrangeiros vêm nos ajudar, porque sós não aguentamos tanta fúria, será que Deus renunciou à sua nacionalidade caboverdiana? Deus cansa, né?

Mas apesar de, de facto, estar tudo doido, a maneira desse povo não mudou muito. Além de continuar a sujar, mijar na rua e gritar palavras de boca suja, o que continua mesmo permanente é esse estado de espírito, como se nada estivesse acontecendo e tudo fosse só mais alimento para piadas. A gente de S.Vicente diz que, agora na Praia, se não se morre de gang, morre-se de Dengue, na Praia dão alcunhas para o demónio, Sakudin, Feru-Gaita e nomes assim, na Boavista continuam a culpar os Badios de ir pra lá montar o inferno. Tudo é um pouco a brincar, do douto doutor ao povo ralé, todos brincam, até mesmo com o Diabo. É da nossa quintessência.

11.11.09

Quarta, Definições

mamata
(mamar + -ata)
  1. Empresa ou administração pública em que políticos e funcionários protegidos auferem lucros ilícitos.
  2. Exploração ou lucro que resulta de suborno ou tráfico de influências. = comilagem, ladroagem
  3. Pop. Negociata, roubo.
  4. Emprego lucrativo sem grande esforço. = conezia, mama, sinecura, teta, tribuneca, veniaga
  5. Ganho ou coisa pouco lícita. = expediente, marosca

marosca
(origem obscura)
Trapaça, arriosca.

arriosca
(origem controversa)
  1. Alguergue.
  2. Intriga.
  3. Logro.
  4. Falcatrua.
(Fonte: www.priberam.pt)

Palavras, até com uma dose de fofura, não faltam para denominar chico-espertice, negócios obscuros, transacções controversas, cálculos indevidos de remunerações próprias, beneficiação involuntária de próximos e parentes, macaquiça...

10.11.09

Terça, 1/3

Para os lados de Palmarejo, quem vem de Quebra-Canela, há batalhas aéreas de Marcianos pela madrugada, largam bombas que fazem buracos na estrada. Quem vem com o carro, livra um buraco e, tunfa!, apanha com outro mais ao lado. Uma irritação diária. Marcianos no ocorrido são de três espécies: o Calceteiro Preguiçoso, o Capataz Fanfarrão e o Engenheiro Irresponsável. Mas entretanto há outras teorias, que ocorreram no passado: a Câmara mandava calcetar e vinham Marcianos da Oposição pela madrugada e descalcetavam. Seria possível? Teoria de Conspiração ou não, o facto é que toda a manhã a cidade acordava esburacada. Sou mais pela primeira teoria dos três Marcianos.

Terça, 2/3

Que são buraquinhos na estrada face à falta de electricidade? Da estrada, podem tirar os paralelos todos, mas será pensável tirar a electricidade a uma pessoa um dia todo, todos os dias? Que Estado de Direito, se não posso processar ninguém pela comida que me estraga no frigorífico, com risco a cada vez de arrebentar o próprio frigorífico? As horas de trabalho que não faço em casa, como se existe homem com poder tanto que me diga que não posso trabalhar em casa? Quem processo por perda de conforto, perda de paciência, perda de paz interior? Mas quem se rala com o conforto e as horas de trabalho extra perdidos, quando morre gente de doença mais séria?

Terça, 3/3

Ouvi ontem o Ministro da Saúde em mini entrevista pela rádio. Era de dar dó! O homem tinha a voz sem o trovão habitual, parecia que vinha a nado por um oceano revolto. Fazia o pobre ideia que por águas crioulas, mansas e quentes por natureza, seria possível tamanha tempestade? Anunciou ajuda de muitos especialistas, da França à Indonésia, mas perguntado, uma pergunta deveras sacana numa hora dessas, sobre um novo hospital, deu guinadas na voz, disse que por agora o que importa mesmo é a Dengue, que sobre o novo hospital, depois da crise, havemos de falar disso, talvez. Espera! O Ministro disse “talvez”? Ah pois, disse. E é isso que acontece a Comandantes que não comandam as naves com mão firme: um dia ou outro a tempestade avassala.

9.11.09

Segunda, Não retoma nunca mais

Já viram birra de criança? Este quer um brinquedo, que também quer aquele, apesar de haver brinquedos de sobra, um puxa dum lado, outro puxa do outro, depois um mete a mão no outro, o outro desata aos berros, a mamã ouve a birra e deixa, a ver se num lance de democracia os meninos deslindam a contenda, mas não deslindam, principalmente se de machos se tratarem, porque parece que a qualidade masculina é dada a um certo embrutecimento, vendo que não adianta e só resulta em enguiço, a mamã intervêm e não raro ter que fazer entender a voz alta da autoridade.

Já me irrita o impasse da Revisão Constitucional, as manobras de uns e as intenções de outros. Esses meninos já mereciam uma palmada!

Segunda, Retoma II

Vamos à mobilização. Sim senhor, um primor ver gente chique, menos chique, nada chique, todos trajados de camponeses, de pá, enxada e vassoura na mão, limpando a empena das suas casas e arredores. Não tão bonito foi ver árvores cortadas!...Cortou-me o coração.

Aliás, por falar em árvores, em CV não é nem crime legal, nem delito moral, deitar abaixo as árvores. Uma árvore vai pró chão com a maior das facilidades, sem que ninguém sinta uma ponta de tremor de indignidade. Isto numa terra em que, sendo seca, uma árvore crescendo e mantendo-se viva, simboliza uma vitória. E num ápice vai abaixo! Tremenda estupidez e prova que as operações não estiveram sempre bem coordenadas no terreno.

Ainda há tempos, para as obras de asfaltagem de algumas vias da Praia, obras polémicas, porque bonitas mas não necessariamente inteligentes ou responsáveis, como vieram a provar as chuvas, mas dizia, por altura dessas obras, deitaram-se abaixo dezenas de árvores. Adivinhem para quê? Para permitir a operação das máquinas!...Um acto de bradar ou de enfiar na cadeia quem permitiu.

O que é bom para a literatura é que este povo não pára de fornecer situações parvas, cómicas, estúpidas e caricatas. Escrevam, que terão inspiração todos os dias.

Segunda, Retoma

Bem, retomamos o curso da normal da vida. Normal, maneira de falar, porque normal a vida não está. Apesar da manifestação inédita de cidadania na sexta, dos esforços consideráveis da Câmara e dos desdobramentos do Governo, a situação continua caótica e medonha. Pesquisadores e trabalhadores estrangeiros abandonam o país, quem pode manda os filhos para o estrangeiro, quem não pode defende como pode. Mosquito zero é uma utopia, esforços individuais não chegam. A crise da Dengue é um resumo, uma espécie de certificado, de todas as más políticas em curso.

A Dengue veio pôr tudo a nú. A começar por uma cidade desregrada, sendo metade dela de casas espontâneas, sem canalização de água e esgotos, sem rede "oficial" de electricidade, sem arruamentos, sem condutas de águas pluviais e residuais, sem um Plano Director, numa palavra, sem política. O Governo precisa de uma conversa a séria sobre a sua política do território e de habitação, que o programa "Casa para todos" é só mais um desses slogans mercadológicos. A Câmara precisa manter a mão firme sobre a população. Boa parte dessa crise advém da incúria e do desleixo.

Está provadíssimo, os serviços de Saúde não aguentam uma crise, seja ela de uma epidemia ou de uma catástrofe. Na lógica das medalhas, esses dias deviam ser emitidas centenas de medalhas para o pessoal enfermeiro e médico que não tem tido mãos a medir e horas de sono completas.

Está provado também. Essa onda de deixar todo o mundo entrar no país sem controlo, não resulta. Vamos pulverizar os estrangeiros, como eles nos pulverizam quando vamos à terra deles. Doenças também são globais, não apanágio só da pobre África. Os barcos também precisam de mais rigor com o que trazem dentro.

A situação continua alarmante. Embora se registe uma baixa ligeira de casos, 600 a 900 casos diários, para a nossa realidade não deixa de ser um sufoco. Todas as medidas de prevenção devem permanecer vivas. Todos devem permanecer alertas.

5.11.09

O responsável é...

NÓS TAMBÉM.

Primeiro, vamos tentar manter um pouco de calma. Antes de mais não é pandemia; é epidemia. Pandemia tem a ver com extensão geográfica (vários países, um continente, ou todo o globo) Depois, o estado de calamidade não é por causa das mortes, que não está morrendo gente calamitosamente; a calamidade tem a ver com a propagação assustadora da doença e o porvir: esta cidade tem todas as condições para a doença expandir-se e instalar-se. Mesmo que acabemos com todos os mosquitos (que tem um nome que lembra Egipto) os ovos vão garantir o seu retorno por vários meses.

Para mim, esta crise deve ser tomada como consequência da incúria em termos de políticas públicas, e do desleixo e descaso, em termos do comportamento dos cidadãos. Deve ser um alerta também que, todo o cidadão é directamente implicado em TODOS os assuntos da cidade. Quem achar, seja ele estrangeiro, de outra ilha, ou de outro planeta, que os problemas da cidade/país não lhe diz respeito, tá aí uma doença que apanha todos, independentemente do seu apego pela cidade. Pois, quem habita este espaço deve cuidar dele e deve exigir medidas públicas consequentes. TORNEMO-NOS CIDADÃOS. Isso implica participação, dar a cara, tirar a bunda de casa.

À senhora que está no estrangeiro, está raladíssima e que acha que a cidade tresanda, devo dizer-lhe que a coisa não é assim negra e a cidade não esse balde de esterco que descreve. Vamos a ter um pouco de razoabilidade. Estamos sim a enfrentar uma crise; todos tem que estar assustados, porque estando assustados, todos vão cogitar tirar a bundinha de casa.

O culpado é...

NÓS!

Eu me declaro culpado. Tenho um reservatório de água em casa que, por certo, não está devidamente vedado. Como disse o médico José Maria Martins: "somos uma cidade de reservatórios de água". Toda a cidade é culpada. Ainda segundo o mesmo médico, nenhuma estratégia está clara, enquanto não abordarmos a questão da água. Todos os tanques, reservatórios, goteiras de ar condicionado, plantas, pardieiros e outros receptáculos e estagnadores de água, são culpados.

Se, casa por casa, não for feita uma desinfecção e vedação de receptáculos consequente, o problema subsistirá.

Falta a coragem ao Governo para declarar Estado de Emergência. Não leio mais as estatísticas. É só ver ao redor a quantidade de doentes que conheço. E das mortes que vão acontecendo.

O bafo negro da morte

Mais uma vítima. Mais uma na colecção negra da Dengue. Morreu a mãe de uma das nossas colegas. Todos se contêm de raiva e dor. No Café Margoso há uma série de perguntas que o Ministro da Saúde devia responder, ou então entregar-se.

4.11.09

Estado de Calamidade II

O Primeiro-Ministro decretou sexta-feira, 6 de Novembro, dia de tolerância contra a Dengue. Bonito isso Mister Premier. O povo levanta as mãos aos céus para agradecer a Deus que tenha posto a Vossa Excelência ao nosso serviço. Agora pergunto-lhe:

QUAL É A AGENDA PARA A SEXTA-FEIRA??

Não deveria ser montada uma célula de crise - Delegacia de Saúde, Protecção Civil, etc. - para orientar quem queira voluntariar-se?

Eu vou fazer o quê? Limpar a minha casa? Isso já faço todos os dias. Vou sair por aí de óleo queimado na mão à procura de poças d'água pela cidade? FAÇO O QUÊ?

Não deveria haver uma acção concertada, em que todas as instituições e empresas seriam convidadas (no caso do Estado, até obrigadas) e desenvolver uma acção concreta?

O que vai estar a Vossa Excelência nesse dia? De óleo queimado na mão?

Ouvi dizer hoje que, um Centro de Saúde fechou as portas às 15h, correndo com a multidão que estava ali. Não deveriam os Centros de Saúde estar em regime de emergência nacional?

Como vão me dizer que não há rupturas de produtos nas farmácias, quando NÃO OS ENCONTRAMOS NAS FARMÁCIAS?!!!

Já não chega deste discurso de "situação controlada"??? A situação NÃO ESTÁ CONTROLADA. Nem à porta do seu palácio, com as suas valas imundas, se a situação está controlada.

Sabe quantos colegas meus estão em casa doentes? 6 Mil é um número aproximado, por baixo, por cima, ou é irreal. Já ouvi 12.000.

Será verdade que a situação já tenha sido do conhecimento dos Serviços de Saúde há meses atrás, que especialistas estrangeiros tenham oferecido ajuda e nós recusamos??

...Sem esquecer o Paludismo.

3.11.09

Estado de Calamidade

Morreu a minha vizinha, minha amiga, colega do liceu. É Dengue, dizem. Mas não se confirma e, evidente, convém não levantar pânicos. A confirmar será menos um ponto para o Governo. Se não se confirmar será menos um ponto para a Oposição. São estatísticas, nada mais do que isso. É grave a situação? Vão me dizer que não, estatisticamente. A situação está sobre controle? NÃO. As medidas são enérgicas? Diria que sim, tendo em vista os sinceros esforços das autoridades nas suas acções paliativas.

Mas morreu a minha amiga e sinto-me extremamente grave. Estou destroçado e nem sei a quem acusar, se Deus ou Diabo. Ou Homens. Como podemos ter tanto mosquito em terra árida? Perguntou uma pessoa. Pois, quem ouve isso pode pensar que temos pântanos. Não, não temos. Temos é lixo, esgotos, água estagnada, obras abandonadas e um carnaval de outras porcarias. E temos a incúria, o desleixo e o descaso, doenças graves.

Não liguem à porra da estatística, minha gente. Vamos parar. Temos uma situação de calamidade em mãos. Os hospitais estão lotados, fazem-se filas nas farmácias por remédios e repelente. Até bares vendem repelente, não seria já famoso o ditado que diz que, toda a crise tem oportunidades. Vamos parar e encarar a situação sem piadas parvas. Médicos, enfermeiros, sei que estão em apuros, mas voluntarizem-se. Políticos, parem com as vossas cantigas; saiam à rua, como quando choram por votos e sensibilizem o vosso eleitorado para o perigo que temos em frente.

Neusa, meu coração, meus olhos, meu suor, chorou por ti hoje. E pelo menino pequeno que fica sem ti. Este espaço está de luto e talvez fique permanentemente. Porque estamos todos a morrer um pouco, em dignidade.

A Indignação do Cidadão

Ah!, um pouco de indignação afinal existe. Indignam-se os leitores com os títulos “cidadão bosta”, “cidadãos saco de porrada” e outros mais. Sim, gostamos de dizer: “Eu não! Eu faço a minha parte e você, Moço Bianda, sabe do que se faz por este país dentro para estar com tais afirmações?”. Cidadão, fazer, todos fazemos a nossa parte. Bons, há muitos por este país adentro. Eu só conheço gente boa no que faz. Eu próprio faço parte de bons projectos que se fazem por cá. Mas não chega. Reclamo do mínimo (obrigatório) que fazemos; da zona de conforto que não saímos; do medo de gritar a pleno pulmões: “cidadãos bosta!”. Sim, somos o povo dos brandos costumes, mas não das práticas brandas, nobres ou coisa que se pareça. A nossa sociedade, ao lado do desenvolvimento, vai apresentando sinais preocupantes e essa “alienação intelectual” preocupa-me.

Pedem-me provas de bostice. Mais provas que a ausência? Quantas posições técnicas, mantendo uma linguagem humana, que conhecemos sobre a crise económica e as suas reais implicações nas nossas vidas? Quantas posições consistentes conhecemos sobre o Desemprego em Cabo Verde e de como vai se comportar no futuro? Quantas posições conhecemos sobre o fenómeno da Desigualdade Social, ainda que o país cresça a bons números? Quantas vezes um técnico, autoridade na sua área, vamos dizer, a Medicina Pública por exemplo, se indigna com a guerra de números dos políticos em torno de uma situação grave como a Dengue? Quantas vezes a Ordem dos Engenheiros se posicionou contra obras descabidas ou perigosas? Que é feito da Ordem do Arquitectos? Existe mais vergonha que a Ordem dos Advogados? Que é feito da Pró-Praia? As situações da Electra e dos TACV já são chagas que aceitamos sem reclamar. A indisciplina, o desrespeito às autoridades, a falta de civismo e essas coisas, já os aceitamos como o lixo que deixamos à porta de casa. Quantos cidadãos tem a coragem de dizer ao canalha que mija na rua: “seu porco!”.

Há um Índice de Cidadania? Qual é a nossa média?

2.11.09

O Cidadão Bosta

Carlos Veiga é o mais novo futuro inimigo da Cultura neste país. Li o seu discurso de encerramento da IX Convenção do MPD e, rigorosamente, a palavra "Cultura" não foi pronunciada uma única vez, nem que seja para significar outras coisas que não a própria Cultura em si, tais como: "cultura empresarial", "cultura de inovação"...NADA. Zero. O candidato a chefe de Governo deste país têm ideias (sem demonstrar como as vai realizar) de tudo - economia, segurança, justiça, saúde, educação - mas sobre a Cultura, nada. Ou ainda ninguém percebeu que a Cultura tem a ver com o Ensino, com a História, com a Investigação, com o Património, com a Arte, com as Manifestações, etc., ou então estamos mesmo mal de "pensadores".

Mas a culpa dessa situação toda são os homens e mulheres da nossa intelectualidade de bosta, que não honram os seus canudos, os seus percursos, os seus prémios e os seus privilégios. É de contar nos dedos de uma só mão, as grandes figuras deste país que levantam a voz contra a estupidez de ideias que por esses dias se vive. Todos, de professores universitários, a sociólogos, antropólogos, politólogos, economistas, juristas, artistas, escritores, filósofos...está absolutamente todo o mundo subjugado ao poder do discurso político-partidário. Não importa o que os políticos tirem da boca. Reacção, consistente, argumentada, sustentada, ZERO.

Neste país, quem vai passar à História são os políticos, por força da formalidade da história, e mais um ou outro, que teve a coragem de ter vida própria.