6.10.10

Ruga-se

Ela era uma manga madura envolvida numa pele lisa e salpicada de gotículas d’água na prateleira de um mercado de fruta. De todo o ângulo que era vista, era redonda e abundante de carne. E nós, cabritos imberbes, que vivíamos contando os pêlos que apareciam um de cada vez, tínhamos uma onda de calor no corpo se ela passasse e no ar ficasse um perfume de manga que pedia para ser comida. Ela tinha olhos de ave de caça e boca firme, pronta a devorar cabritos imberbes. Morríamos de medo que ela visse que transpirávamos, tremíamos, que pressentisse as nossas vontades, e, num acto de fera que sente sangue, nos atacasse. 

Volto aqui todos os anos e todos os anos a cidade tem mais uma ruga, velha desgastada de uma vida vivida a pleno num tempo passado. Ela, a manga, passou por mim, é cozinheira do restaurante que vou. Por instantes, por instinto, o que vejo é a fruta madura, como um arquivo que guarda a melhor foto, mas logo vejo os seus olhos esvaziados de perigo, baixados. Ela ainda ocupa o ar com formas ovais e movimentos de dança, mas os seus olhos flutuam num líquido turvo. Perdeu brilho na pele, tem varizes. Não pressente mais rapazes que a perscrutam, olha para um nada, de boca cerrada, como que acabada de provar fel. Ninguém a salpicou mais com borrifos d’água. Era seca.

Volto aqui todos os anos e a cidade envelhece entrevada numa cama. Nada mais mexe. Cadeiras vazias. Teimo em ver poemas a balançar no mar calmo da baía, mas as rugas da velha mais parecem feridas mal cicatrizadas. A cidade tem nova safras que não florescem. Tudo vive num arquivo, guardando a melhor foto. 

2 comentários:

Anónimo disse...

gostei muito deste seu texto; admiro e exercito a capacidade de síntese; muito bom, parabens

Cesar Schofield Cardoso disse...

Obrigado pelo teu comentário generoso Aber. Na verdade um dos prazeres de ter um blog é, quando dá aquela inspiração, de uma coisa que vimos ou lembramos, existe um lugar onde podemos deixar a sensação que tivemos.

Fica bem e continua a partilhar-te
César