30.11.11

Lições práticas de F.da.putice - 1

Ao terminar esta lição o leitor terá aprendido como arranjar um carrão em 3 tempos. Mais, nem precisa levantar o rabinho da poltrona.

Em Cabo Verde, uma das formas mais eficazes para arranjar um carrão é:
  • Primeiro, aprenda a lamber. É uma arte difícil, que só alguns nascem dotados, mas com treinamento aprende-se. É preciso ter estômago, escolher a pessoa certa a lamber e escolher o sítio certo da pessoa a lamber. Exige paciência e subtileza.

  • Segundo, arranje o mais alto cargo que puder numa instituição pública. As empresas do Estado são as mais apetecíveis e delas os Bancos são autênticas minas. É importante que aprenda a se manter no lugar por um período mínimo equivalente ao tempo de amortização contabilística de uma viatura (se não entende do assunto, arranje um contabilista FDP). Não crie ondas, não dê passos em falso, as aptidões lambescas continuam a valer nesta fase.

  • Terceiro, compre o último modelo de carro topo de gama mais na moda no país. Não tente inovar no modelo, compre o que a maioria dos lambescos estão a comprar, ou pelo menos assegure-se que mais dois executivos da sua instituição-teta-de-vaca adquiram o mesmo modelo ou equivalente. Passado o tempo de amortização do seu belo carro, terá só que propor a administração (na qual você manda) a aquisição da viatura por 20% do preço inicial.
Voilá! Espero que tenha tido bom aproveitamento desta lição grátis de F.da.putice.

29.11.11

Bandidos, Palacianos Filhos D.P.

Imagem de Lucie Stahl e Will Benedict

Hoje pus-me a ler os títulos das notícias após não querer lê-los durante dias. Barbara e a sua filha em S.Vicente foram brutalmente atacados. Guida queixa-se de estado de stress. Vamos entrar naquela época do ano que, é melhor vigiar tudo, até as árvores, que ainda somos assaltados por um ramo de árvore. Já alguém o disse, a questão não está nas estatísticas, se o crime baixou ou aumentou 1%; a questão é o clima de medo.

No café, à conversa com compadres, contavam-me como a malta dos partidos anda descaradamente a apresentar-se ao chefe, para o próximo tacho, para ser o próximo candidato a um cargo público qualquer, nem frenesim tal, que prova que tachos na administração pública e cargos políticos são os melhores negócios que se podem fazer por cá. É só ver os carrões que são dados aos tachos maiores. Por isso, de forma clara, sem escrúpulos e sem ponta de ressentimento, quem puder deitar a boca às tetas do Estado, vai fazê-lo com a mesma ferocidade que faz o bandido de rua.

Corrupção, tráfico de influências, roubo, homicídio, agressão e outras tantas palavras vão se tornando habituais no nosso vocabulário e o pior que já nem nos choca.

26.11.11

Partida


Quando partimos os olhos demoram a largar o horizonte numa tentativa de reter lembranças, sons, cheiros, momentos com pessoas, os bons momentos. Por algum tempo essas ressonâncias vão parecer vida real, até podemos sorrir sozinhos num canto só de lembrar coisas pequenas, insignificantes toques de felicidade. Depois esvai-se no tiquetar dos dias, o ruído dos carros abafam a melodia das vozes. Partida é assim, é chorar de dor de partir, é prometer amizade eterna, trocar endereços e nunca escrever. É querer nunca ter partido e nem se lembrar disso tempos depois. Partir é guardar fotografias para se ver em silêncio, como quem escuta a canção favorita, com headphones.

Filme Infantil Pornô, Dirigente Polígamo, Ministro Ladrão e Deputado Doido

Teimamos em fazer de nós próprios de parvos e não perceber a sintomática. Aceitamos de ânimo leve que a alma pequena nos domine a todos. Deixamos que os maus modos passem como gestos simples e homens rudes sejam os guardadores dos nossos valores, que as crianças se tornem bichos armados, se vistam de putas, se comportem como adultos podres.

Estamos encurralados entre o chiqueiro de porcos e o saco de farelo, sem terceira via possível.

20.11.11

Art House

Ver um bom filme, digo, um bom filme!, é sempre uma experiência inspiradora. Imaginar o trabalho do colectivo - do argumentista, do realizador, dos técnicos, mas essencialmente do actor -revela-nos que só o trabalho obstinado é capaz de arrancar verdadeiras emoções.

Este Jane Eyre foi escrito no séc.XVII, vejam lá. Realmente a arte é intemporal. Levado para o cinema pelas mãos do jovem realizador inglês Cary Fukunaga, que já nos tinha brindado com o excelente "Sin Nombre", esta história é terrivelmente humana e daí intemporal. No elenco a impecável Mia Wasikowska (Alice no País das Maravilhas, de Tim Burton) e o potente Michael Fassbender, que tanto me impressionou em "Hunger". Este filme, para todos os que amam a fotografia, é uma master class de iluminação low key (escuro dominante na imagem). Já quero ver o próximo filme de Cary Fukunaga!

+ info: IMDB

15.11.11

Cheers!


O compadre Baluka voa muito e passamos tempos sem ver. Quando nos vemos, foi ontem!

Os amigos de verdade não tem distâncias e justificativas. Vão à vida e vem, tudo na mesma. O compadre Baluka volta sempre com um bom vinho na mão e ouvimos jazz. No outro dia descobrimos um portentoso Palo Alto do Chile, maravilha de vinho! Ouvimos Dee Dee Bridgewater, Diana Krall, que começo a dar uma chance, Patricia Barber, que parece uma tempestade calma. Também ouvimos uma gajo que acabo de descobrir, de Israel, Avishai Cohen, que voz, que jazz! Só faltou a diva Cassandra Wilson, mas as tantas não há peito para tanta vibração.

Fomos adentrando a noite, ao som do jazz e das ondas de Praia Negra, a praia morta de morte matada. Ao largo, os barcos, monstros bondosos, com os seus guindastes e o seu gingar lento para os lados. Fico assim a ver através do ar preto os movimentos da noite. Sem ponta de pressa. Amando profundamente o meu canto e os seus cheiros.

13.11.11

Relatório sentimental


Conheço bruxas, de verdade! Maimuna, que é uma flor de três pétalas que nasceu em Moçambique, fala em língua de bruxa. Também a prima Lúcia conhece essa fala. Mamã tem as suas tiradas de bruxa e eu acabo por aprender bruxedos básicos. Maimuna dizia-me, também fala assim a prima Lúcia, que nada acontece por acaso, que tudo está ligado por linhas invisíveis e as bruxas, boas e dóceis, conseguem ver essas linhas, só isso.

A prima Lúcia previu todas as linhas invisíveis que me puxaram aqui a ali, que me ligaram a este e a aquele, as linhas que mudaram os últimos dois meses da minha vida. Maimuna, a minha bruxa de serviço em S.Tomé, fazia-me leituras diárias de sinais, como um assessor de impressa faz recortes de notícias. Eis umas ligações invisíveis:

De enfiada, conheci tipos fantásticos, brothers in art, e de repente já temos projectos, planos, esperanças e uma alegria de estar juntos, como se esperássemos por isso toda a vida. René, sentiste isso? Tu também Kwame? Uma estranha e palpável sensação de conhecer Adelaide encarnações atrás, os seus olhos familiares e as suas palavras dirigidas a um velho amigo. João Carlos Silva olhou um momento para mim em silêncio e disse-me: parece-me conhecer-te de longos anos! Paulo e Guida parecem vizinhos de longa data! Podia caminhar a marginal de S.Tomé de olhos fechados, conhecia as pedras de cor.

Hoje queria ver um filme, mas não um qualquer, nem sequer um excelente qualquer. Queria uma coisa que me cortasse um pedaço de tripa. Quando acabei de ver este filme Dogtooth (Dente Canino), do grego Giorgos Lanthimos, que tem a força de Michael Haneke e a bizarrice de Lars Von Trier, fiquei em estado de espanto. Não nos podem acontecer tantas coisas fortes ao mesmo tempo sem que isso signifique muito.

12.11.11

A mata

Atravessando a mata. A mata vive, tem ossos, carne, coração, espírito. No carro o condutor conta a história da árvore que foi cortada num dia e no dia seguinte apareceu de pé, ainda com as marcas da serra, mas de pé e eu vi, vi mesmo. A mata tem mistérios.

Na roça do João oiço as histórias de S.Tomé, que são tantas, cruzadas, emaranhadas, resolvidas, mal resolvidas, problemáticas, esperançosas e por aí fora. O céu desaba-se em água. Chove sempre, sempre e forte. A mata tapa tudo, só se vislumbrando um punhado de casas ali, um troço de estrada mais além, o cume dum monte ao longe, uma breve vista do mar e as vozes. A mata tem sons e vozes.

S.Tomé tem povos vários, atirados do mar para dentro da mata. Com o lento escoar do tempo os povos se cruzam mas ainda dizem, nós, eles, aqueles, este é nosso, aquele é deles, não queremos saber nada deles e assim. Os povos ainda não sabem se juntar, num único abraço.

9.11.11

Orgulho Cabo Verde

O meu país destaca-se no seu continente. África sofre de ponta a ponta. Se não é de guerra, é de fome, se não é de fome é de corrupção, de violação de direitos individuais, de negação de direitos humanos básicos. Quase todos os países africanos são classificados de pobres e muito pobres. E no entanto o continente é incrivelmente rico de natureza e cultura. A pobreza só tem a ver com os jogos humanos.

Nesse quadro Cabo Verde parece um paraíso. Orgulho-me de morar num sítio sem guerras abertas, onde as mulheres tem direitos reais, onde as criancinhas já não morrem tão facilmente, um país que tem um projecto de governação electrónica exemplar e uma verdadeira democracia. Estamos bem em termos de qualidade de telecomunicações em África, vamos tendo uma quantidade razoável de portos, estradas e aeroportos. A prevalência da SIDA é baixa e o mais importante, temos uma mentalidade aberta. MAS (é preciso um grande MAS) as condições para se perder essas vantagens não estão eliminadas. Dessas condições é a corrupção o que mais me preocupa. Corrupção no sentido lato, das famílias, das empresas, dos partidos, dos governos, de todos. É necessário uma Justiça bem forte, de modo a garantir que todos respeitam os ganhos obtidos, para que ninguém tenha a tentação de estragar com os pés o que já fizemos com as mãos.

Gatos e Ratos

O Governo anda naquela mansidão característica de quando anda a tratar das suas próprias coisas e não propriamente de governar o país. As autárquicas se avizinham e prometem luta renhida, unha por unha, dente por dente. Esta é a hora dos traidores e dos chico-espertos. Muitos já sabem que o partido no poder já não terá as mesmas chances que no passado e viram-se independentes. Os que há uns anitos atrás defendiam o partido cegamente, agora tem muitos argumentos para se "distanciar" dele. Inversamente, o partido da oposição tem mais chances, então muitos até agora ilustres anónimos dão a cara, exibindo bravura e abnegação, num tocante exercício de devoção à causa pública. Então senhores, é isso que a malta que devia estar a administrar o Estado anda a fazer, a brincar de gato e rato. Governo mesmo só daqui 1 ano e olhe lá!

8.11.11

Na raiz do mal

Uma das coisas mais tristes que vi em S.Tomé e Príncipe são as mulheres bêbadas. É uma coisa que me espanta verdadeiramente, primeiro porque na minha terra é mais comum que os bêbados sejam homens, segundo porque sempre me preocupou a questão da dignidade da mulher, por uma razão muito simples, ela é mãe. Ouvi uma história de arrepiar em STP, de uma mãe, com o filho bebé nas costas, caída de bêbada na estrada, quase a esmagar a criança. Foi o irmão em pessoa que me contou a história.

Associado à bebida, as famílias padecem do mais variado leque de males. É super comum a irresponsabilidade paterna, a sociedade é incrivelmente machista, mulheres não se vêem, nem se ouvem, muitas vezes as crianças estão abandonadas à sua sorte, pelas ruas, a tentar sobreviver. Em certas zonas da cidade, por causa da chuva incessante e da falta de condições sanitárias, o cenário é de miséria bruta. Do outro lado da cidade já vão aparecendo resorts turísticos, os únicos sítios decentes e aprazíveis à vista, onde a elite local, no bar, entre um whisky e outro, vai aprendendo a se distanciar cada vez mais da sua população.

É preciso denúncia à miséria no mundo, porque ela não tem nadinha a ver com os recursos materiais. Tem a ver exclusivamente com a acção humana.

7.11.11

Mata Cerrada

A mata é a vista dominante de S.Tomé e Príncipe. E o mar. Do alto, do avião, avista-se desde a aproximação, a a mata. No meio do oceano, uma mata só. Depois de aterrar, aos poucos, os olhos habituam-se e vêem-se casotas, pessoas. Depois são só pessoas. Pessoas e mais pessoas, mercados abarrotados de pessoas. E cheiros e lama. Aos poucos a cidade nos invade, com cheiros e sons: cacaôô!