16.9.12

Nós sentimos magia



Nós fazemos ilusionismo e vocês sentem magia, disse Corsa Fortes, o nosso mágico, perante um público de crianças e pais vibrantes, no pátio do Centro Cultural do Mindelo, apelidado de Casa do Mindelact. Seria antes Templo do Mindelact?

O que se passa no Festival Internacional de Teatro do Mindelo, ou simplesmente Mindelact, é do domínio do religioso. Trata-se da fé profundamente incrustada na alma dos seus fazedores. Trata-se de devoção, sacrifício, oferendas e trabalho, até à mortificação da carne. Só a religião explica o acontecimento do Mindelact.

No pátio do Templo do Mindelact crianças e pais vibrantes sentem a magia das estórias de Corsa. Mindelact criou um ciclo de contação de estórias. Não conheço maior investimento que se podia fazer para a Cultura. Ficamos a saber que em Alentejo, Portugal, contam-se estórias que se parecem com as que se contavam em S.Antão ou na remota ilha Brava. Ensinamos aos meninos e relembramos aos adultos as coisas fundamentais e tão básicas, como escutar os acumulados ensinamentos dos mais velhos. Ensinam-se regras de higiene, do bom comportamento, o valor das coisas, dão-se lições de moral, no meio de risos, espanto, excitação e maravilhamento. A escola devia ser um teatro.

Ana Madureira faz um jogo de cabra-cega e nós sentimos uma torrente de emoções. Aconteceu assim uma peça (Ou será uma performance? Ou será uma instalação?) num palco montado na ex-esquadra da polícia de Mindelo, edifício que deixou de ser povoado de almas rancorosas para passar a ser espaço de inúmeras possibilidades. Ana Madureira tem o poder de cantar, dançar, transformar-se numa aranha, numa cobra, para de seguida ser uma velha bruxa e no momento a seguir uma ingénua noiva. Cabra Cega, de Ana Madureira, é um espectáculo para todos os sentidos e sentires. É sobre nós, a nossa ruidosa solidão, as nossas estúpidas fantasias. É sobre carinho da avó e frieza da vizinhança.

Nós fazemos sons e vocês veem imagens. Khalid cria mundos em imagens 3D, somente com a sua voz. Ou aliás, com as suas 80 vozes. Faltou só sentir na pele o molhado do oceano que ele cria ou as flechas de índios que dispara contra ele. Faltou só provar o chá servido na sua aldeia povoada de cabras, galinhas, patos e outros sons.

Nós formamos artistas e garantimos o recomeçar do ciclo. Alunos do 14º Curso de Iniciação Teatral do Centro Cultural Português apresentam um exercício que revela já em que direcção vai continuar a acontecer a magia. A peça, de nome Pink Punk, é isso mesmo, é punk, é rock, é universal, é do Mindelo, o centro do Universo.

14.9.12

Ressaca de asfalto


A ilha vive assim, ao sabor das maré, que veem e trazem cardumes humanos, depois vão e deixam um cheiro de perfume caro, misturado com tabaco, com ecos de risos lascivos.

As marés trazem o Carnaval, a folia, a louca exuberância, o povo todo da ilha sacode o corpo em transe, depois pára a batucada e ficam pastilhas-elásticas grudadas no asfalto e carros alegóricos a apodrecer num pardieiro.

A ilha é uma concha na rocha. Come quando vem a maré, descansa quando ela vai.

13.9.12

Cal Velha e Fresca


Adoro os polos opostos das sensações causadas por Mindelo, minha cidade-natal. Gosto deste misto de belle époque e triste époque, das maneiras cosmopolitas e campesinas, da dilatação e contração dos espíritos. Em todos os lados, milhões de pessoas ou apenas milhares, as pessoas são complexas. Mindelo é complexo. Parado e vibrante, antigo e moderno, arrancando e parando. Mindelo dá um passo em frente, uns passitos para os lados, pára. Não sabe bem por onde ir. Dá um passo, passitos, pára. As mesmas pessoas estáticas nas mesmas esquinas são marcas que garantem que o sítio é mesmo o sítio de sempre. Bem como as imensas caras novas que são marcas de renovação do ciclo. O mesmo ciclo, certo, preciso.

12.9.12

Tempo de viagens


Sentado no Aeroporto do Sal, ao som de Wayne Shorter no iPod, em trânsito.

As viagens, de todo o tipo, pelo ar, pelo mar, ou pela música cósmica de Wayne Shorter, proporcionam afastamento da realidade. Afastamento em comprimento e em altura. Permite comparar e medir. Medirmos a nós próprios, principalmente. Da profunda Abidjan, à diversificada Praia, passando pela ligeiríssima Ilha do Sal, chegando no multi-facetado Mindelo, tudo é complexo, tudo é humanamente complexo.

Sentado na esplanada, tão quieta que pardais ousam chilrear bem ao meu pé, vejo movimentos de lá pra cá, de cá pra lá, porque é mesmo assim a vida, a movimentar-se, o que me faz ter imensa pena dos que estão sentados e imobilizados, sem capacidade de caminhar ou viajar. Vou me convencendo desta ideia, que o segredo da vida, de viver quero dizer, reside na nossa capacidade de movimentar e se movimentar. De outra maneira apodrecemos como uma banana esquecida numa fruteira.

4.9.12

Rotas Africanas


Sair de Cabo Verde às 07:30 e chegar a Abidjan às 19:30 não é propriamente uma viagem de sonho. Escala em Dakar. Valeu a excelente “Paella de Legumes” ao almoço no Chez Lutcha e valeu mesmo pela velocidade do serviço, porque havia outra avião a apanhar. Valeu a simpatia. Aliás, valeu breve paragem em Dakar.

Kenya Arways, direcção Abidjan, excelente serviço de bordo, atenciosos, sorridentes, belo avião, a contradizer muitos depoimentos sobre as viagens intra-africanas. A bordo, um encontro casual com Oumar, senegalês, de uma simpatia e abertura de espírito realmente pan-africano. 2h30 de voo e de conversas sobre os vários aspectos dos nossos países e sobretudo do continente, visto como um todo, visto com profundidade suficiente para se aperceber que um diálogo novo entre os nossos países começa a ser até ridículo que não se faça. Imensos mercados, imensos espaços, imensa gente, imediatamente aqui ao lado e continuamos a olhar obstinadamente para um horizonte bastante mais longínquo e bastante mais difícil de penetrar.

Abidjan, uma cidade de 4,5 milhões de pessoas, num país de 18 milhões. Um país de vários contrastes. Abidjan, uma cidade de uma natureza estonteante, construída à volta de vários lagos, em contacto com o mar e planícies a perder de vista. Uma cidade que espanta pelo seu downtown a lembrar grandes capitais do mundo e igualmente pelas grandes bolsas de pobreza. Uma cidade indecifrável, nas suas intermináveis combinações, para um africano oriundo de uma cidade de 150 mil pessoas.