21.2.13

Praia Mundi

Artista: Nicholas Byrne

Pai, na minha sala há 2 americanos, 3 angolanos, 1 guineense, 3 portugueses...e 13 caboverdianos. Ahn, um dos caboverdianos é filho de uma russa. Foi assim que Naia se deu conta da multiculturalidade da sua sala de aulas.

Uma das razões porque gosto tanto da Cidade da Praia é porque gosto tanto de gente diferente. E Praia tem qualquer povo que se possa imaginar, com especial predominância de senegaleses, guineenses, nigerianos, mas também imensos portugueses. Sem esquecer os chineses, que parecem se multiplicar por clonagem. Mas ainda há indianos, espanhóis, franceses, italianos, japoneses, brasileiros, de outros países e um pouco de todo o lado. Tenho pelo menos um amigo de cada um dessas origens. O que não gosto é da imensa ignorância, o que leva à intolerância, de uns em relação aos outros. Nós não gostamos de nenhum deles, enchem-nos a terra. Os portugueses não gostam de nós, vivem fazendo piadinhas. Nós não gostamos dos chineses, que são antipáticos, mas também eles não devem morrer de amor por nós. Os guineenses não gostam de nós, que somos armados em superiores, igualmente os senegaleses acham-nos levianos, os franceses nem se misturam, igualmente os espanhóis preferem o seu gueto. Os angolanos tem uma definição concisa de caboverdiano, nós também deles. Regra geral, qualquer africano do continente não nos considera africanos, porque regra geral não nos sentimos africanos. Os europeus não nos reconhecem como africanos, mas tão-pouco nos reconhecem com europeus. Preferimos pertencer a uma raça abstracta que se chama atlânticos. Oiço essa coisa da boca de muito boa gente. Somos uma geração da intolerância, mas com pretensões cosmopolitas. Fingimos nos dar bem, mas não nos damos bem. Sorrisos em face um ao outro e passamos um jantar todo a descascar para cima dos outros. Vice-versa já foi observado também. Eu gosto de eles todos, excepto os seus maus comportamentos. Também eu já fui surpreendido a ter atitudes exemplarmente racistas, mas procuro me adaptar, juro. Mas enfim, gosto tanto deles todos, até porque dão-me motivo para escrever.

Naia vai crescer numa Praia multicultural e nem vai se lembrar da origem dos seus amigos do parque de diversões. Ou pelo menos é a minha esperança.

20.2.13

Notas cotidianas

Artista: Christopher Knowles

Boa educação à moda antiga ainda não tem substituto. Continua válido, elegante e delicioso.

Normalmente saio de casa de manhã bem devagar. Apanho os raios de sol todos, entre a casa e local de trabalho, porque nesses dias tenho o privilégio de ir ao trabalho a pé. Paro, falo com as pessoas, não tenho pressa nenhuma em chegar ao escritório. Nesse pequeno tempo entre um local e outro, acontecem coisas incríveis, boas e más. Aconteceram-me:

Um miúdo, que não deve ter mais idade que a minha filha de 8 anos e portanto devia estar, ou na escola, ou a estudar, ou a brincar, mas não, em vez disso vendia rebuçados na ponta da esquina para ajudar a economia familiar. O miúdo virou-se para mim, abruptamente, e disse: "kant'ora?" (quantas horas?). É exatamente por isso que gosto de sair de casa devagar, para ter calma de espírito para reagir as negatividades do cotidiano. Virei-me para o miúdo, num tom de pai, e disse-lhe: "querido, diz, por favor, diga-me as horas e no final diz obrigado". Obriguei-lhe quase que repetisse a frase e ele timidamente, envergonhado, repetiu. Despedi-me, como um pai. No outro dia, vinha a passar na mesma rotina, o miúdo virou-se para mim e disse: "senhor, que horas são, por favor?". Tive um ataque de sorriso! Disse-lhe as horas e ele aprontou-se: "obrigado, senhor!". O sorriso deve ter ficado incrustado na minha cara o dia todo, espreitei o miúdo ao afastar-me, ele via para mim e sorria, no que podia traduzir-se por: "obrigado senhor, por me ter ajudado a ser um miúdo melhor".

Adoro esses detalhes do cotidiano. 

15.2.13

Ativismo de pacotilha

(donde apanhei não vinha autor, sorry autor)

Ficaria muito contente se o protesto sobre um alegado plano maquiavélico de acabar com a praia da Lajinha, em S.Vicente, fosse um verdadeiro ativismo civil e ambiental. Esclarecimento: ativismo, o verdadeiro, caracteriza-se por um movimento de cidadãos responsáveis, que se organizam, repito, se organizam, torno a repetir, se organizam, para estudar (repararam que disse "estudar"?) um assunto e, constatando clara indicação de lesa interesse público, mais uma vez, se organizam para procurar as melhores formas de protesto, que passam por escrever cartas fundamentadas às autoridades, fazer conferências de imprensa elucidativas, publicar nos jornais, fazer filmes para a Internet, criar petições, fazer vigílias nos locais afetados, e ter a consciência que essas lutas podem durar anos. Já agora, lembrem-se de perguntar aos outros interesses na ilha, o que pensam sobre isso: os operadores económicos, os proprietários de camiões, os comerciantes, etc. Outra coisa, deixar que os políticos tomem frente dessas "batalhas", não conta.

Ficaria muito, mas mesmo muito feliz, se esse protesto representasse um acordar de um sono secular sobre a GRANDE destruição da Baía do Porto Grande, em S.Vicente. Ao longo de décadas, se calhar já vai para um século, essa baía sofreu todo o tipo de exploração selvagem. Começando pela razão da prosperidade de Mindelo, a exploração do carvão. Passando pelas petrolíferas. Ou ainda o grande poluidor Estaleiros Navais. Ou até mesmo o grande Porto. Sem esquecer Caizim, a lixeira marítima. Sem mesmo esquecer a Marina. A Baía do Porto Grande recebe todos os dias que o universo criou, uma carga nova de poluentes, desde de lixo ordinário, a hidrocarbonetos, pneus, esgotos, decapagem, químicos e mais uma data de coisas. É a baía mais poluída do país, apesar de na superfície ser a baia mais linda do país.

Pois então ficaria contente se, finalmente a sociedade começasse a questionar as coisas, num modo geral, a pôr os seus próprios modos de vida em questão, passassem a ser mais ambientalistas e solidários. Que tirasse a bunda do sofá e doassem um pouco da sua energia a causas não remuneradas, que festejassem, mas também batalhassem. É que, ter posições bombásticas é fácil. O difícil mesmo é viver com convicções, como fazendo parte da nossa ação, para sempre.

8.2.13

Tarantino, humano afinal


Já vi todos os filmes do Tarantino (excepto a curta de estreia e um tal de Four Rooms) e vou continuar a ver tudo o que ele faça, porque é dos cineastas que mais me inspiram, mas, à revelia da grande histeria mundial à volta de Django Unchained, eu não adorei o filme.

O que mais se destaca em Tarantino, para mim, é a sua capacidade de surpreender o mais avisado dos cinéfilos. Tinha jurado que não via mais nenhum filme sobre a II guerra, mas com Inglorious Basterds lá fui porque era o meu herói Tarantino. Não perdi a viagem, aliás nunca imaginei ver um tal catarse ao Holocausto. Pois, em Django nada surpreende. O argumento é revelado inteiramente nos primeiros 10 minutos, os personagens são francamente inferiores ao que já nos habituou Tarantino, excepto a monumental interpretação de Leonardo DiCaprio, e até o apoteótico momento de banho de sangue, marca indelével de Tarantino, em Django foi um tiroteio sem piada. Detestei o personagem de Samuel L. Jackson, a quilómetros de distância do maravilhoso Jules de Pulp Fiction ou o todo poderoso Ordell de Jackie Brown. Esse Dr.Shultz que perecia ser a grande promessa do Django, é afinal uma pálida sombra de grandioso Coronel Landa de Inglorious. A pretensão de filme-catarse esvaiu-se completamente na novelinha do amado que vai salvar a amada, numa alusão a um conto alemão também de amado que salva amada, que no final resultou nisso mesmo, numa novelinha. Tarantino domina vários códigos culturais, mas quanto a mim, precisa pensar numa versão melhor de catarse  da escravatura nos Estados Unidos. Terá irritado Spike Lee pela ligeireza de mexer com esses códigos. Até mesmo num aspeto que ele também demonstra grande criatividade, a banda sonora, aqui em Django meteu um rap que parece-me algo forçado. Prefiro a sua cultura funk.

Enfim, sempre na minha pessoalíssima apreciação de um dos melhores realizadores do cinema contemporâneo, Tarantino parece-me estar a atravessar aquele momento na vida de um artista que é preciso repensar a linguagem, afim de evitar a desgraçada imitação de si próprio. Tarantino habituou-nos a uma nova obra-prima a cada novo filme e eu, enquanto fã absoluto, não podia deixar de ficar desiludido por este que considero a sua obra menor, na esteira de Reservoir Dogs, Pulp Fiction, Jackie Brown, Kil Bill I e II, o super-hiper Inglorious Basterds. Bem talvez seja melhorzito que Death Proof, outro tiro ao lado de Tarantino. Que venha o próximo.