29.5.14

A Província

Artista: Jiri Kovanda

No lançamento de um livro (As Revoltas) que fala abundantemente e até repetidamente, de como o estado colonial, constituído por reis, raínhas, príncipes, governadores e demais hierarquias por aí abaixo, junto com a igreja e o seu longo historial de suporte ao poder, oprimia o povo, de forma física, concreta, abusiva, mas também de forma moral, ao propagar uma simbologia de superioridade branca-cristã, em detrimento dos negros e as suas "negradas", é curioso observar como o evento em si se faça num ambiente de pompa palaciana. Com direito a um atraso palaciano também, no que já se repete entre nós, enquanto não chega a comitiva real, nada começa. O tempo e a paciência dos súbditos que se lixe. A divisão do espaço e dos assentos, entre os muito ilustres, os mais ou menos ilustres e, na parte mais recuada, a comunidade dos alunos, também recria esse ambiente de reis, raínhas, demais titulares da corte e finalmente o povo, lá ao fundo. Tudo era muito protocolar. A miúda que nos recebia à porta tratou de me encaminhar para o meu devido lugar, unicamente com base na minha aparência, creio. Num misto de enorme atraso, desorganização e um excesso de aclamações, acabei por sair, por imperativo de outros compromissos, sem cumprir o meu singelo objectivo: ouvir os apresentadores e o próprio autor. Repete-se, recria-se uma visão da sociedade e das coisas, em que importa mais o aparato que a substância. Ao invés de se concentrar no significado profundo que é a publicação de tal obra, tudo se torna fogo-de-vista. Assim segue a província.

27.5.14

Elos fracos

Foto emprestada de Afreaka

Lei que criminaliza o roubo de energia, claro, sou a favor. Sou a favor de leis que criminalizem quaisquer criminosos. A chatice aqui é que, no caso, são milhares de criminosos, também conhecidos como população.

É uma prática judicial antiga, colonial. Até prova em contrário, a população é culpada! Culpada de ter tradições avessas à boa moral da sociedade, culpada de causarem distúrbios, de ocuparem indevidamente o território, de serem pobres, estúpidos e analfabetos. Culpada de edificarem zonas degradadas na cidade e de causarem uma péssima imagem ao turismo. A população, desleixada, prefere a via da criminalidade a ter que morar em bairros decentes, em casas decentes, em condições decentes de luz, água e sanitários. Prefere vir estragar a cidade a ter que ficar no campo, em condições até mais ecológicas. E para piorar ainda mais as coisas, população aos milhares de outras zonas pobres da África, vem ocupar indevidamente este território, para além de causarem distúrbios e aportarem mais tradições avessas à boa moral da sociedade. Estamos perante uma pressão exagerada da população, à qual o Estado não tem condições para dar conta, muito embora seja uma obrigação constitucional, ter a população como primeira prioridade.

Mas, justiça seja feita, o país tem modernas estradas, aeroportos e portos. Temos meio milhão de turistas a visitarem todos os anos o nosso belo país. Somos top ten em África, caraças! O país está a criar as condições para atrair investimento externo e almejar um desenvolvimento poderoso no futuro. Daqui até o futuro, pede-se à população que aguarde em barraquinhas, sem água, luz ou esgotos, em encostas sem acesso ou infraestruturas sociais. Eu até mandaria retirar a iluminação pública, sendo bairros ilegais, espontâneos, periféricos, não-planeadas, ou o raio de nome que se lhes queira dar. A população que aguarde, ou terá que se bater na justiça.

20.5.14

Reafricanização dos Espíritos

Artista: Aboudia Abdoulaye Diarrassouba

Foi preciso vir um senhor das Nações Unidas, um mandjako, como o próprio teve o cuidado de se etno-identificar, numa suave alusão ao nosso racismo velado, para nos dizer que o nosso afastamento de África é desastroso. Quantas vezes, mas digam-me, quantas vezes já encetamos aqui e ali este debate sobre a África e quanta ignorância e desprezo já vimos a desfilar sobre o mesmo tema?

O Senhor Mandjako, Carlos Lopes de seu nome, Secretário Executivo da Comissão Económica para a África, das Nações Unidas, fez uma estruturada análise, e apontou o dedo para os riscos de: a nossa pesada democracia, assente numa tradição jurídica europeia; o não seguimento da evolução demográfica, em que brevemente teremos uma população enorme de velhos que pesarão o sistema de protecção social; e, a parte quente do discurso, a excessiva ancoragem à Europa. Mostrou por a+b como a nossa teimosa rejeição dos espaço africano pode nos conduzir a uma triste orfandade. É que a nova realidade geo-estratégica global indica-nos que a Europa está em falência e a África está em poderosa ascensão, economicamente falando. Essa realidade já atraiu investimentos de todo o mundo, da China aos EUA, todos se reposicionando. Bem, Cabo Verde em teoria estaria bem posicionado, se o espaço africano fosse naturalmente nosso. Mas não é. O que mais fazemos é rejeitá-lo.

OK, identificado e provado que está a nossa afro-rejeição, tempo de "mudança de mentalidades", que foi aliás o mote da comunicação de Carlos Lopes. É aqui que entra a parte difícil. Virar-se para o espaço africano não vai ser necessário somente passar a pagar as quotas da CEDEAO, ou passar a frequentar as reuniões cimeiras. Essa mudança vai nos obrigar antes de mais à aceitar a nossa posição enfraquecida, complexada e distorcida sobre o mesmo tema. Teremos de aceitar, antes de tudo, que somos brutalmente desconhecedores do continente, das suas enormes capitais, os seus movimentos, as suas dinâmicas e os seus líderes atuais. O "virar-se para a África" não poderá ser só uma questão de pragmatismo, como disse Carlos Lopes. Terá de ser de coração, a fundo, participando, estando, sofrendo junto, fazendo parte na carne e no sangue. Caso contrário estaremos a pensar num edifício com alicerces de barro.