26.6.14

Eu não sonhei com esta cidadela

Fico autenticamente horrorizado, de cada vez que vou à Cidadela, o bairro que nasceu no estirador de um arquitecto e vendido em anúncios de TV que faziam sonhar. Como é possível tamanha selvajaria na ocupação do território? Caminhos malucos, crateras na estrada, não há vislumbre de uma única árvore, cada centímetro é ocupado com casas que parecem bunkers, não vejo espaço para estacionamento de carros, nada que se pareça com um jardim, as crianças não terão parques de diversão, os jovens não terão terrenos de jogo, nem pensar num teatro, cinema, auditório ou coisa que se pareça, nem sequer haverá um largo, vazio, sem nada. Tudo será brutalmente ocupado de cimento. Até mesmo a orla do mar, abusivamente construída. Naquela que podia ser das mais invejáveis zonas da cidade, com vista privilegiada para o oceano. Tudo vandalizado. Ainda falamos com boca cheia de desdém do bairro do Inferno! Classe média ou medíocre?

24.6.14

Eu não sonhei com esta cidade

Artista: Andrei Koschmieder

Heis as sementes. Tratamos os chineses à imagem dos produtos que vendem, referimo-nos aos guineenses como o mais inútil dos negros, nigeriano é sinónimo de bandido e todos os outros imigrantes africanos, que não conseguimos identificar a origem, metemos num enorme saco chamado "mandjako". Olhamos com desconfiança os arabófonos e até já afiamos as nossas facas contra o Islão, crescente no nosso solo. Hoje, temos imigrantes do todo o lado, inclusive europeus, dos quais os portugueses são um caso particular. Por um passe de mágica, boa parte do tecido empresarial, das telecomunicações, a banca, a construção civil e uma série de outras actividades, tornaram-se de investimento português. Privilegiar essa fonte de investimento tem uma explicação oficial: aproximação histórica. Só que "aproximação histórica", para além da poesia, guarda uma carga de conflitos. Acordamos os fantasmas de morgado e rendeiro, recuperamos a palavra "patrão", que tem um som colonial e "crioulos", na conversa miúda dos patrões, significa "essa gente difícil de trabalhar". Um "patrão" já teve o desplante de me fazer essa queixa, presumindo que eu era "um crioulo do lado deles". A simples noção de "lado de cá ou lá" é sectária. Mas claro, pagam os justos pelos pecadores. Para o bem da verdade, sinto-me privilegiado por morar numa cidade tão cosmopolita, como vem se tornando a Cidade da Praia, mas preocupa-me imenso as sementes da intolerância, regadas de parte a parte. A formação de guetos na cidade, sendo possível fazer uma geografia exacta de onde cada grupo de imigrantes habita, não será um fenómeno alheio. Um autor refere-se assim aos guetos: "uma forma especial de violência coletiva concretizada no espaço urbano" [ver]...Bem, eu não sonhei com esta cidade. 

23.6.14

Um pouco de óleo nessa desengrenagem

Foto ripada de um post de Rosana Almeida no Facebook

Dois caboverdeanos dão a vitória a Portugal num jogo da Copa. Não! Dois portugueses negros dão a vitória a Portugal num jogo da Copa. Reparem na expressão "selecção nacional". Ou seja, esses negros são nacionais de Portugal. O que interessa a origem? Alguém anda a questionar a origem moura dos tantos portugueses? Mas, aqui vem a parte sensível. Há portugueses negros? Porque razão os meninos, netos e bisnetos de emigrantes caboverdeanos, nascidos, criados e não vendo outra terra senão Portugal, são ainda chamados de caboverdeanos? Ou mesmo os que emigraram e que escolheram Portugal como nação. Ou só se tornam portugueses, os negros com extraordinárias habilidades, como Nani e Varela? Onde estão os negros na vida pública de Portugal? Onde estão jornalistas negros, artistas negros, deputados negros, ministros negros? Fico pelo ministro, para não ter a ousadia de querer ver um negro na chefia de algum órgão de soberania portuguesa. Onde estão as imagens negras na televisão pública portuguesa, cineastas negros, fotógrafos negros, escritores negros? É Portugal ainda uma sociedade racista, do género "Angola é nossa"? E o que dizer da crescente comunidade portuguesa em Cabo Verde, normalmente detentores de maior poder económico que os caboverdeanos, que se referem a nós com o termo genérico "os crioulos"? E que dizer desse sistema político-económico que promoveu outra vez, pouco tempo depois da descolonização, portugueses como patrões? 

11.6.14

Cultura Tóxica

Artista: Mandla Reuter

O alcoolismo é um desses graves problemas, que vemos tratando com leviandade. Não vejo outro termo. Ontem, ouvia na rádio um chefe da polícia a anunciar pomposamente a detenção de um indivíduo na posse de 700gr de erva, com direito a prisão, julgamento, conferência de imprensa e tudo. Já viram alguém ser preso por vender grogue? E entre os dois produtos, qual terá mais toxicidade?

Gente, grogue não é cultura. É um álcool, que é tóxico para o organismo. Pode ser doce e cheirar bem, mas é um tóxico. Pode ser até limpinha da fonte, mas continua a ser um tóxico. Contêm etanol e, em doses mais ou menos elevadas, metanol, que é um composto extremamente perigoso. Existe uma escala de qualidade das bebidas alcoólicas, de acordo com a "honestidade" do seu fabrico, mas continuamos sempre e sempre com o problema de fundo: álcool é um tóxico. Visitem os hospitais e mais precisamente a psiquiatria e verão a amplitude do problema. Para além dos graves distúrbios mentais, ataca gravemente o coração, o fígado e o pâncreas, mais todo o resto. Visitem as estatísticas, vejam os graves danos sociais que isso está causando, vejam o impacto na economia. Como assim alcoolismo não é uma prioridade de saúde pública? A amplitude do problema é esmagadormente superior às estruturas criadas para o seu combate, a priori e a posteriori. Se não acabarmos com essa mania que álcool é fixe, estaremos perdidos. Vamos desclassificar o grogue como património cultural?..É, eu sei, é um ideia que dói, mas toda a transformação dói, principalmente aquelas que nos retira conforto. Entre o consumo social, o bom grogue e demais mitos, tudo contribui para uma verdadeira catástrofe dentro da nossa sociedade.

4.6.14

Corned Beef

Artista: Zoe Leonard

Sigo com interesse os casos de justiça no meu país. Nunca se tinha visto tanto, cidadãos que vão ao tribunal contra o Estado, ou empregados que processam os empregadores, instituições estatais que processam uns aos outros, denúncias de negligência médica, ou até a condenação de altos gestores. A democracia trouxe esse benefício, de obrigar a que a vida em sociedade seja mediada pelas leis. Se a justiça funciona bem ou mal, é uma questão importante, mas o facto é que modificou o nosso relacionamento com as outras pessoas e as instituições. Carlos Lopes, economista da ONU, falava dos custos da democracia em Cabo Verde, referindo-se ao facto de, sendo a democracia uma aparelhagem legal, os recursos e as instituições necessários ao seu bom funcionamento têm um custo enorme. Mas pergunto, qual será o custo da não-democracia? Ou, qual é o custo da autocracia? Ou ainda, haverá formas de democracia mais ligeiras, que essa assente numa pesada infraestrutura legal? Falou-se da importação de uma tradição jurídica europeia, mas que outros modelos podíamos seguir?

2.6.14

Feijoada enlatada

Artista: Mohau Modisakeng

Mindelense ganhou o campeonato nacional, mas os festejos, em comparação aos do Benfica cá, parecia um desses apitos baratos, que quase não consegue apitar. Não houve nem cortejos quilométricos, nem auto-tanques lançando água numa multidão em delírio e nem acaloradas declarações de importantes figuras. Mas percebo. Ser do Benfica é uma religião, é um pertencer. É o clube, o grande. É ver craques, verdadeiras estrelas que desfilam em carros de luxo, tem namoradas louras e vão a galas. Ser do Benfica é um pretexto para ir a Lisboa, visitar o Estádio da Luz, a catedral do futebol. É benéfico para a leitura, de todos os jornais, dos casos desportivos e extra-desportivos. Dá tema para semanas de conversas, debates televisivos, enche os bares,  as barbearias, mantêm muita gente com algo na cabeça para se preocupar. É o glorioso. Nada que se compare a Mindelense, um minúsculo clube sediado numa infame rua de botes, num poeirento pequeno país, sem glória, sem catedral e sem luz. Ser do Benfica, clube português, é bem mais fácil. No fundo, para quê fazer a sua própria feijoada quando já há feijoada enlatada, pronta a consumir, com carne e tudo?