16.6.17

"A Outra África"


Uma reflexão sobre narrativas na edição de Nha Terra Nha Cretcheu, de 06 de junho de 2017, com o título "A Outra África" (https://www.rtp.pt/play/p3061/e292359/nha-terra-nha-cretcheu).


Essa edição, querendo ou não, acaba por reforçar determinados estereótipos, como sejam: enfoque desproporcional nos imigrantes negro-africanos, em relação a outros imigrantes em presença e muito especialmente aos imigrantes europeus, sendo que esses nem são falados; falar do islão e da prática da poligamia dentro do islão, sem um conveniente enquadramento; reproduzir os mitos de Cabo Verde como África excepcional; bem como usar uma linguagem e uma imagética sempre no tom da beleza exótica, do povo ameno e tranquilo. A imigração em Cabo Verde é tudo menos tranquila. De parte a parte, tanto as autoridades locais, como as comunidades enfrentam enormes desafios, sendo a discriminação e a integração os maiores deles, temas deixados de fora nessa edição. O que interessa analisar são as inclusões e as omissões dessas narrativas, tentando adivinhar a ideia que se procura construir, comparando-a com a realidade.

Nessa edição o pivô anuncia "comunidades" como tema [subentendendo-se comunidades imigradas]. No entanto, percebe-se logo que há um recorte em imigrantes de África e mais especificamente, África dita de oeste. A primeira questão tem a ver com essa seleção, sabendo que 29% dos imigrantes são de outras regiões, entre os quais 17% vem da Europa, com destaque para portugueses e italianos. Mais adiante o programa centra-se na religião islâmica entre os imigrantes (37%), sendo que a maioria dos imigrantes (41%) são cristãos. Depois dedica-se vários minutos para falar da poligamia dentro do islão. Mas, o aspeto mais problemático é a sugestão que os imigrantes procuram Cabo Verde pela sua "paz, estabilidade social e clima ameno". É onde entra o elemento de exotização e uma ideia latente que outras partes de África não funcionam, que aqui, nas ilhas maravilha, é "A Outra África", que aliás é o título dessa edição. As várias perguntas que se levantam são: qual é a razão de não falar dos europeus como imigrantes? Qual é o interesse especial nos imigrantes africanos? Qual é a diferença entre imigrantes africanos e imigrante europeu? A motivação de base da imigração não é económica? Quais são as questões sobre o Islão? Qual a razão de destacar a poligamia no Islão? Porque não se fala dos grandes problemas que os imigrantes passam e, aí sim, os africanos com mais incidência? Qual é o impacto das produções audiovisuais de e sobre Cabo Verde, feita por empresas estrangeiras, mesmo que no caso seja uma de direito cabo-verdiano? Ou, pergunta feita ao contrário, qual é o impacto de uma produção audiovisual desligada do conhecimento sociocultural produzido localmente?

Sendo que o vídeo é linguagem forte, amplamente difundida, a literacia hoje deve incluir o ler e fazer vídeo. Especialmente o vídeo como documento social, que representa a realidade amplamente distorcida. Um dos maiores problemas que África tem pela frente é a longa produção de imagem e narrativas acerca das suas realidades sociais, feita a partir de uma perspetiva eurocentrada, que se limita ao exótico e ao problemático. Contrariar, ou refazer essa longa produção é uma tarefa monumental, em curso, em estádios avançados nalgumas paragens, que demora a iniciar-se na "África lusófona".Cabo Verde sofre particularmente dessas narrativas pré-fabricadas, ao juntar-se os mitos das ilhas como espaços idílicos. Da Cinemateca Portuguesa, numa sessão organizada pela investigadora do cinema colonial portuguesa, Maria do Carmo Piçarra, chega-nos um filme de 1967 (!), intitulado "As Ilhas de Cabo Verde", realizado por J.NAngot. O filme tem uma espantosa ressonância na produção audiovisual cabo-verdiano atual, de teor "promocional", ou diria antes "propagandístico". Até que ponto existe uma linhagem entre lusotropicalismo português, cinema e audiovisual no espaço lusófono?