5.3.18

Mornas são as posições


Curiosamente, nunca ouvi a Morna em toda a minha vida! Assim tipo ter discos de morna em casa. Nem conheço ninguém das minhas relações que o faça. Deve ser a maior ausente de todas as formas de fruição da música em Cabo Verde, como discotecas, festas, rádio,s playlists nos computadores, telemóveis, etc. Duvido que os 72 deputados que acabaram de instituir um Dia Nacional da Morna também a oiçam com regularidade, ou até conheçam a sua história. Ninguém a ouve! Como tal género se torna então a maior bandeira musical de Cabo Verde?

A Morna é mais identificável nas ilhas da Brava, Boavista, S.Nicolau e S.Vicente, que representam na atualidade 20% do total da população residente. É praticamente inexistente em Santiago, que representa ela só 55% da população. Aliás, Santiago, Fogo e S.Antão, que representam 70% da população, tem géneros musicais bem mais potentes, tanto em história e tradição, como musicalmente, exemplos do Batuku, Funaná, Kurkutisan, Bandera, Kolá Boi, Tabanka, etc.


No entanto, por um brilhante acidente de percurso, a Morna é o género cabo-verdiano mais conhecido no mundo, graças ao sucesso comercial de Cesária Évora. Mas, as novas gerações de sucesso comercial no estrangeiro, como Carmen Souza, Tcheka, Maira Andrade, Mário Lúcio, ou, para mencionar um caso mais mainstream como Lura, nem se atreveriam a ter um repertório baseado na Morna.


A Morna, por decisão de uma cadeia reduzida de pessoas influentes e não por um processo de investigação cultural, concorre a Património Imaterial da Humanidade da UNESCO, que alegadamente trará vantagens para o país. Bem, até devia/podia, por exemplo, possibilitar o estudo dos outros géneros musicais da nossa cultura popular. Mas, pela triste história da Cidade Velha, Património da Humanidade da UNESCO, sabemos que esses títulos podem não acrescentar nada ao valor patrimonial de tais marcos, como podem até ter um tremendo efeito adverso, como a especulação imobiliária ou uma turistificação nefasta. No caso da Cidade Velha, esse título da UNESCO, em si pretensioso, nem serviu para desflorar um assunto maior da nossa história, a Escravatura.


Esses processos ensinam-nos várias coisas sobre nós próprio. É já problemática a falta de uma fibra intelectual endógena, capaz de romper com os ditames coloniais e pós-coloniais. A Morna é um género que está associada ao "nascimento da intelectualidade cabo-verdiana", a partir da geração conhecida como Nativistas, no séc.XIX, de onde Eugénio Tavares se desponta. Uma intelectualidade burguesa, lusitanista, elitista, branca. A Morna terá sido declarada como autêntica representante da identidade cabo-verdiana, na Primeira Exposição Colonial Portuguesa, de Salazar. Portanto, a Morna é desde essa história colonial a representante musical oficial de Cabo Verde. A Morna e a intelectualidade cabo-verdiana estão marcados assim ab initio por uma negação brutal de toda uma parte substancial, para não dizer maior, da nossa cultura popular. O simples facto de se considerar como marco de nascimento da intelectualidade cabo-verdiana a partir dos Nativistas, de Eugénio Tavares e da Morna, é provocar uma lobotomia a toda a atividade intelectual anterior, presente no texto político do Batuku ou do Kurkutisan, nas representações sociais da Tabanka, ou no percurso riquíssimo da Bandera. É esquecer, por exemplo, que Nácia Gomi é a todos os títulos uma das maiores poetas que esta terra viu nascer. Dizer que a afirmação da língua cabo-verdiana se deve à Morna é no mínimo uma arbitrariedade grosseira.


Esta extraordinária ordem de acontecimentos, que leva a Morna a ter um dia só para si no calendário nacional e ter uma candidatura a um título cimeiro da UNESCO, é bem sintomático da história da elite cabo-verdiana e da apatia do resto de nós. Não menos curioso é a transferência de foco de Eugénio Tavares para B.Léza, num piscar de olhos. É risível a sucessão dos factos na base de "sugestões" dessa tal cadeia de pessoas influentes. Sintomático é também o discurso megalómano do Ministro da Cultura, que declara ser uma decisão do povo! Cabo Verde parece uma borboleta mágica no Concerto das Nações.