29.11.20

O meu amigo Joel e o meu amigo Fela

(imagem emprestada de https://www.geledes.org.br/)

Finalmente vi o filme “O Meu Amigo Fela” do meu amigo Joel Zito Araújo. A maior parte dos filmes que vejo, no final saio satisfeito, informado, desiludido, irritado, maravilhado, ou simplesmente contente por ter passado um tempo de qualidade. Algumas horas depois já passou. Para um grupo selecto de filmes, como “O Meu Amigo Fela”, fico ainda alguns dias em questionamentos, dúvidas e sentimentos múltiplos, às vezes até contraditórios. O que me leva a escrever.

Joel Zito não é só um cineasta. É uma liderança política. Tal como Fela Kuti era. O que torna um artista numa liderança política, na mesma ordem que líderes de partidos ou da oposição? É que não chega tematizar um assunto político. Após ver “Negação do Brasil” e “Raça”, outros títulos de Joel zito, a abordagem em “O Meu Amigo Fela” parece-me parte coerente do pensamento e da ação política do autor. O que lhe confere o título de liderança, na minha opinião, é o potencial de mobilizar discursos e ações, nas atuais lutas anti-racista, anti-colonial, anti-imperialista, anti-capitalista, ou todas elas combinadas, não só no seu Brasil, mas num contexto de luta negra mais alargado. Por exemplo, como esse filme pode informar uma descolonização mental de Cabo Verde? 


Ao propor trabalhar a memória de Fela Kuti, contextualizando essa memória num tempo histórico, talvez o mais intenso na luta de emancipação negra (60, 70s), lembrando que foi o período que produziu todas as independências em África e importantes conquistas de direitos civis nos Estados Unidos, Joel Zito faz ao mesmo tempo um trabalho de pós-memória, ao produzir uma espécie de manual de como incorporar essas memórias
nos processos de luta atuais. A alusão a Gabrielle Franco (ativista negra-brasileira barbaramente assassinada) no filme é um sinal claro dessa operação interessante de linkagem de memórias. Talvez nem faça sentido falar em pós-memória e sim num continuum memorial.


Para além das óbvias qualidades cinematográficas do filme, em que a direção é de mão firme e a montagem é igualmente de louvor, a inteligência do filme reside nessa fina tessitura no tempo-espaço da luta pela dignidade dos povos africanos e afrodescendentes. 


No final talvez o filme seja menos uma biografia de Fela Kuti e mais uma demonstração de como a vida, a luta e a morte de Fela Kuti se constitui como peça fundamental no complexo puzzle da luta negra. E essa parece-me ser a resposta à pergunta final do filme, se terá valido a pena o sacrifício humano que Fela Kuti impôs a si próprio. É também nesse sentido que a natureza machista, misógina e tirana de Fela Kuti (a sua chamada “complexidade”, num claro desconforto historiográfico) talvez seja pouco relevante, em relação à sua grandiosa contribuição estética e política.


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