Nos esquemas mentais que suportam preconceitos enraizados e transmitidos de geração em geração entre os cabo-verdianos aparece o badio, a representação social do negro/mestiço descendente dos africanos escravizados, umbilicalmente ligado à ilha de Santiago, identificado pela cor de pele escura e/ou pela condição de ser «brabu». Essa expressão, que nasceu como a crioulização do «bravo», portanto, corajoso e destemido, foi socialmente resignificado como «bruto/incivilizado».
A história santiaguense diz-nos que os primeiros «vadios» foram os escravizados que fugiam da Cidade Velha e dos morgadios para se instalarem em pontos de pouca acessibilidade da ilha. Num segundo momento, passaram a ser «badios» os compulsivamente alforriados e jogados à sua sorte por causa das fomes cíclicas. Enquanto deambulavam pelas vilas da ilha em busca de meios de subsistência, aliviavam os seus Senhor@s do encargo de os alimentar.
Por isso, o badio é a psi-sociogénese do homem negro livre em Cabo Verde, seja por conta da sua bravura e do seu destemor, ou porque as circunstâncias socio-ecológicas assim permitiam. Mas ele nasce como um excluído incluído no sistema escravocrata. Em tempos de boas águas, o badio era o «bravo» e incansável trabalhador. Em tempos de carência, tornava-se um miserável deambulante; um «brabu na tchada»; um problema para os terratenentes e para as autoridades públicas, dado que, ocasionalmente, dos bandos assolados pela fome se formavam grupos de assaltantes.
De realçar que, nos séculos XV-XVII, a ocupação laboral e a submissão à doutrina católica definiam a condição de civilizado. Mas nem todas as camadas sociais em Santiago estavam possibilitadas de se apresentarem como civilizadas em todas as conjunturas sociais. Se a evangelização foi precária por fatores diversos, dando com isso vida a uma religiosidade popular secularmente menosprezada, os frutos do trabalho eram incertos e até mesmo os grupos privilegiados lutavam entre si para assegurar a sobrevivência, situação favorecida pela fragilidade da Coroa portuguesa em controlar os contrapoderes locais.
No período da Monarquia Constitucional (1820-1910), a ilha de Santiago passou a ser um obstáculo estrutural à evolução política. Para o enraizamento do liberalismo era preciso uma terra nova. Baluarte do absolutismo no arquipélago, marcada pelas seculares disputas entre os diferentes poderes, esta ilha não era um ponto de partida seguro para a construção dos sonhos liberais. Isso explica, em parte, a intensificação das lutas entre os absolutistas e os liberais pela mudança de sede da capital da província, a partir dos anos trinta do século XIX. Porém, o argumento central daqueles que advogavam a mudança era de foro sanitário. A Praia era descrita como insalubre, pantanosa, pestilenta, portanto, mortífera para os dignatários que vinham da metrópole Lisboa.
Entretanto, a segunda metade do século XIX, marcada por lutas políticas e culturais, viu nascer a elite letrada crioula, rendida aos ventos liberais/republicanos que assolavam Cabo Verde, formada academicamente no Seminário-Liceu em São Nicolau, e civicamente pelo desenvolvimento da imprensa local, como atestam os estudos de Baltasar Neves, José Carlos dos Anjos e Manuel Brito-Semedo.
O republicanismo, triunfante em 1910, promoveu uma cultura laicista, urbana e progressista, absolutamente hostil a tudo o que representasse o monarquismo, tanto que a sobrevivência da Igreja Católica nas ilhas se deveu, essencialmente, ao enraizamento da devoção das populações, à substituição dos clérigos por leigos locais, e à uma forte resistência cultural nos meios rurais aos ideais progressistas republicanos. O interior da ilha de Santiago destacou-se como o espaço onde essa resistência foi mais intensa.
A isso o republicanismo respondeu com o reforço do mito da superioridade cultural das ilhas do norte, mito que seria eternizado na propagação da dicotomia luso-tropical que opôs o sampadjudo (enquanto urbanizado, civilizado, europeizado) e o badio (enquanto ruralizado, rústico, africanizado). De notar que os descendentes dos terratenentes de Santiago e a elite cultural praiense tenham, também, se apropriaram dessa distinção, criando a sub-dicotomia «badio de Praia» e «badio de fora». O primeiro seria badio por nascer em Santiago, e não por comungar de práticas culturais com os de «fora» da Praia.
Na definição do civilizado, o capital religioso e económico tornaram-se irrelevantes e passou-se a considerar, exclusivamente, o capital cultural/escolar. O facto de o badio ser trabalhador ou piedoso tornou-se irrisório. O seu misticismo devocional, tomado pelas luzes progressistas e pseudocientíficas como obscurantismo e superstições, foi tido como a mais clara evidência da sua inferioridade cultural, a que foi somada outras provas, como algumas práticas tradicionais e a deficiente escolarização.
A maior ironia da nossa história é que, após terem sido considerados obscurantistas, porque resistiam e mantinham vivas as suas tradições católicas, o badio, seguidor do velho catecismo, foi também considerado, pelo progressismo católico, como cristão velho, supersticioso e obscurantista.
Ocorreu que, a partir de 1941, nas vilas do interior de Santiago, os missionários espiritanos passaram a desenvolver um intenso trabalho de reevangelização da população. Porém, alguns devotos mantiveram-se fiéis as diretrizes dos «padres de batina preta», e liderados por anciãos/líderes religiosos que asseguraram as práticas religiosas na ausência destes padres, abandonaram as suas vilas, aldeias, casas e familiares, e foram construir novas habitações em localidades de difícil acesso, de forma a evitarem as ideias trazidas pelos «padres de batina branca». Este facto gerou o único cisma católica da nossa história: o movimento sectário dos Rebelados.
É desnecessário dizer que a questão dos rebelados, também, reatualizou a inferioridade cultural dos badios, seja nas ações políticas/religiosas coloniais de combate aos «rebeldes» nos anos 60 do século passado, seja nas ações políticas/culturais pós-coloniais de fixação da memória da população sofredora.
Se no passado o badio, na sua ânsia evasiva, dispersou-se como fugitivo pelo interior de Santiago, como «língua, lançado ou tangomao» pela costa ocidental da África, e como funcionário régio pelas outras ilhas de Cabo Verde, hoje, os seus descendentes retornados fazem, também, da Praia, como cantou Romeu Di Lurdis, uma “doci mai, ta kíria senpri más um fidju”.
Assim sendo, é sensato que as autoridades públicas e todos os cidadãos tenham a devida atenção quando afirmam que as “particularidades culturais da população” (de Santiago) são um dos fatores que explicam a propagação do vírus causador da Covid 19 na ilha. Os ensejos de desresponsabilização institucional e de alerta para os perigos que nos cercam não devem fomentar os preconceitos e as descriminações que nos dividem enquanto nação e que fragilizam o espírito de solidariedade comunitária, sem esquecer que, ainda, pouco se sabe acerca das cadeias de transmissão do vírus no arquipélago.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 967 de 10 de Junho de 2020.