Eram meninos, não inimigos. Meninos nunca são inimigos. Na parte de manhã andavam na mesma escola. À tarde, depois dos trabalhos de casa, brincavam na mesma rua, tranquila nesse tempo. Francisca era assim, uma planta frágil que se tinha de regar, endireitar e tirar as folhas secas a toda a hora. Corriam livres, faziam jogos, inventavam. Era Nuka quem sempre vencia, decidia e batia em Francisca por qualquer motivo, porque ela caia, errava no jogo, dizia uma parvoíce, porque apetecia-lhe, por tudo. A pequena Francisca chorava. Mas tinha Kiko que lhe amparava nos grandes braços e peito. Kiko investiu-se da missão de estar ao seu lado a vida toda, até hoje, casados. Na rua afastava as pessoas, distraídas ou malvadas, que vinham embater-se nela, na escola defendeu-lhe o melhor que soube, de Nuka e de todos.
Cresceram assim, na rua do restaurante de Dona Anastácia, mãe da Francisca, onde também trabalhavam a mãe da Nuka e o pai do Kiko, ela empregada de mesa, ele guarda e faz-tudo. Dona Anastácia, a patroa, era uma personalidade imponente e generosa, apesar da enfraquecida filha. Ajudou os meninos como se tratassem os três de seus próprios filhos, mas tinha especial admiração por Nuka, pela firmeza do seu corpo de menina criança, pela sua pele cor de café, até perecia que herdara a firmeza dos seus olhos e não os da mãe. Mas um dia, Nuka, por alguma razão, tinha sovado severamente a sua Francisca. Acabou a bondade. Dona Anastácia parou tudo à sua volta, cuspia fogo, quase arrancava as orelhas à pequena Nuka, brigou por mais de vinte minutos, Nuka foi se esconder atrás da saia da mãe, muda e impotente. A patroa que tinha fingido por muito tempo não reparar no abuso permanente à sua pequena, não teve outro remédio senão correr com elas dali para nunca mais.
Francisca passou a gerir o negócio depois da doença da mãe, doença de arrependimento. Francisca revelou dotes de empresária após o curso. Fez crescer o restaurante, hoje lindo e reputado. Emagreceu toda. Dizia-se que era a roupa que estava de pé. Os olhos afundaram-se em olheiras escuras. Foram vários anos, muito mudou, e um dia Nuka entrou no restaurante de mala na mão. Estavam no expediente, Francisca a distribuir as ordens e Kiko, sempre ao lado, como que em eventualidade dela cair. Kiko foi apanhado de surpresa pela repentina aparição de Nuka, não se conteve de contentamento e foi recebê-la num asfixiante abraço. Francisca um passo atrás, indecisa, sorriu de esgar. Nuka vinha à procura de emprego. Francisca sorrindo mais um pouco, não disse palavra, aguardou que ela implorasse finalmente, Por favor Francisca, preciso.
3 comentários:
Ousa mais, radicaliza-te, meu amigo, que estás na calha da boa prosa. Dá-me pica especial ler o teu texto criativo e magicar o sub-texto das tuas intenções. Põe quanto és no mínimo que fazes, já dizia Fernando Pessoa.
Filinto Elísio
Pois...a mania de controlar os riscos.
Olha que radicalizo e depois culpo-te do monstro que resultar! :)
Abraço. Obrigado
César
Encaro, com humildade e estoicismo, o comentário do (ou será de?) Fã anónimo. Mas cautela alguma, posto se inscreve no destino o ser ultrapassado. Digo até que faz parte do interesse da vida. Caso contrário, isto seria uma grande pasmaceira, impossível de suportar. Todos somos biodegradáveis. Até Deus. E ainda bem...que o absoluto inexiste. Quanto à escrita do Schofield, ela me encanta, não pelas posições que defende, pois estas são sempre discutíveis, quando não polémicas e ficam a valer pela diversidade a ficar enriquecida, mas pelo sentido Estético que lhe vai inerente. A continuar...
Filinto Elísio
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