19.11.09

Quarta-Parede

Furtado é um crápula!, rasgou este raio a calmaria da tarde na esplanada. Que dizes, mulher? A esplanada é a proa de um barco em pedra. As amigas pararam de súbito a música que faziam tilintando o gelo nos copos de whisky, não repararam que ela começara um choro miúdo, perdidas que estavam na distância do horizonte. Que dizes, mulher? Que Furtado é um crápula, agora em pingos maiores, um porco, uma fraude de trinta anos este meu casamento, que não posso mais, lágrimas torrenciais! Não repitas asneiras, mulher, Furtado é um homem bom para ti, Não é, deve amar mais as cadelas das amantes que eu, as ondas batiam com violência em baixo nas fundações da esplanada, rolando os calhaus em rufar alto, ela abria-se em prantos, nunca antes ouvidos. Devo terminar com esta condição de não ser mais mulher, soluços secos. Não sejas burra, amiga, tens a vida que nenhuma de nós teve, avalia bem. É amiga, pensa bem. Pois, pensa bem, essa deve tar rebolando-se de contentamento, tempos há que noto que arrasta as duas asas para cima do meu marido, a cabra. As decisões não se tomam a ferver, pensa que tens mais futuro a viver que passado vivido, aliás do passado nem guardas grandes alegrias, tens agora uma boa vida. Furtado cuida mais do carro que cuida de mim, voz fina. Pára com tolices, mulher, olha para ti! Um estalo que lhe estancou a choradeira, o resto da água corria-lhe pelos olhos morridos, cara abaixo, nas inexpressivas faces, secando-se de seguida ao vento, as ondas, os calhaus, retornaram ao seu rufar pendular. Amiga, nenhuma de nós viveu os sonhos de meninas, nem amou os homens de revistas, nem se deitou em lençóis de seda. A vida reserva-nos dificuldades e Deus sabe as dificuldades para darmos de comer aos filhos, se permitir um pouco de conforto.

Meteu ar no peito, secou com as mãos o molhado na face, na fronte, tirou ar, as palavras das amigas flutuavam como cantigas de embalar, respirou com calma, da bolsa tirou um pequeno espelho, pente e batom, ajeitou-se, os lábios eram de novo tinta brilhante, endireitou-se, alinhou as mamas, era de novo a mulher ornamento que sempre foi. Ao pegar no cartão do banco para pagar a conta, gesto repetido inconsciente, e as chaves do carro, prendas de Furtado, o sol tornou a brilhar no seu céu, Que tontice a minha! Recolocou o sorriso discreto de dona de si, voltando-se para as amigas, com o ar de decisão que lhe conheciam, e ordenou, Vamos?

2 comentários:

Et disse...

Se há chorares de silêncios que merecem ser publicados. Este é um deles! Mas Kauverdianu/a senpri buska un pon ku un padas. Mudansa, eziji!

Anonymous disse...

Existem jovens mulheres nessas condições em CV em maior numero do que imaginamos mas isso tudo é fruto de uma sociedade que criamos uma sociedade que só dá valor a forma e quase nenhum valor ao conteúdo. Sendo assim vemos as mulheres (as maiores vítimas de uma sociedade de formas) a correrem feito vacas loucas para conseguirem um "Furtado" porque o "Furtado" lhe dará tudo o que essa sociedade vazia dá valor, carro, cartão de crédito para estar nos bares mais in bebendo whisky velho, vestindo as melhores roupas do mercado, usando a melhor make up, enfim...
Daí as meninas que se perdem se oferecendo em troca de euros...