16.11.09

Segunda-Versão

Foi quando percebi que na política, uns sentem e outros a praticam. Parei de bebericar o capuccino, hábito gostoso vendo televisão, como chá, vinho ou pipoca. Parei de escutar os ruídos da casa, rádio, frigorífico, e da rua, carros, buzinas, gente, para me dedicar de plenos sentidos à televisão. É quando acontecem desastres ou atentados, ou como nesse dia, pela primeira vez, Octávio, companheiro de anos distantes, agitava-se dentro da televisão, falando num comício do partido. Não que fosse inabitual aquela tonalidade apocalíptica de discurso político, é que não havia possibilidade nenhuma de identificar aquelas palavras com o familiar camarada de sentar o rabo numa escadaria do nosso bairro, a tecer considerações sortidas sobre tudo o que ocorresse, sem a mínima preocupação de ligar efeitos, causas ou consequências, valendo só a passagem do tempo. Octávio, na televisão, em comício de partido, falava como os outros falam, de tortura, monstros, elevando a voz e cerrando os punhos, rematando as frases com murros no púlpito, recebendo em troca histéricos aplausos, apupos. Faz pausas para se ajustar no fato, que não teve tempo de encontrar gravata apropriada e calhou aquela de bolinhas, limpa charcos de suor que lhe inundam a cara e, na diminuição do frenesim do povo, retoma com igual ferocidade verborreia, reactivando os ânimos, os aplausos, apupos. Lista sofrimentos que teve na vida, sem que em instantâneo flashback eu pudesse descortinar o momento histórico de tais tormentos. Antes da escola, fomos inocentes, comum em putos. Na escola aconteceu-nos participar em organizações juvenis, que tempos depois, vim a saber, lavavam cérebros, e nas paredes, quadros com nomes, depois vim a saber, eram os lavadores de cérebro. Nada mais que as excitações das visitas de estudo, as excursões ou as assembleias de brincar de discutir a política. No liceu, o cérebro deslocou-se mais para baixo e tortura mesmo era amor não correspondido. Depois do liceu, cada um partiu para um lado e reencontrávamos nas férias para tortuosas e quentes noites de paródia. Não encaixei as assombrações que Octávio repetia de voz trémula, choro quase.

No dia seguinte, a tarefa era de topo de agenda, fui vê-lo, sem delongas circunstanciais ou desnecessários preliminares, perguntei-lhe, Que palavras eram aquelas, amigo? Onde foi parar as nossas dissertações sobre a justeza das ideias e o comedimento das acções, os teus sonhos, pátria e utopias? Sem se perturbar, de pé, sério, esperava-me já diria, encolheu os ombros em sinal do mais patético dos óbvios, disse-me, Acabou a brincadeira, amigo, entrei na política.

1 comentário:

Pss disse...

Algumas "capítulos mais tarde" dessa estória Octávio foi visto outra vez: A conduzir Prado, já era Gestor da Palhota do Cidadão, Administrador Não consequente do Mamata Nacional e ainda era Deputado Municipal na Assembleia Municipal do Concelho de Santo Philips.