17.11.09

Terças

Brama
Arrumou o biquini no carry-on, com a mesma excitação de criança que arruma o caderno na mochila para o primeiro dia de aulas da vida. Ganhou uma bolsa de estudos para o seu doutoramento. Centenas de países por escolher, sentiu-se atraída por Cabo Verde, porque leu, ouviu, contaram-lhe da boca dos próprios caboverdianos imigrados na sua cidade, as virtudes de viver em Cabo Verde, ainda mais tratando-se de moça nova, com os cartuchos do amor ainda plenos, viçosa, belíssima como era Júlia. Ia viver para umas ilhas, mar e música por toda a parte, gente sorridente, calma como a própria brisa, um país em paz, reputado pelo seu desenvolvimento, terra onde cresceu o grande ideólogo, que Júlia já conhecia por estudo até os hábitos mais íntimos, Amílcar Cabral. Abandonaria a vida entalada em filas, elevadores, subterrâneos e autocarros, para enfim ter um pouco de sossego para os estudos, a grande dedicação da sua vida.

Vixnu
Aterrou com o sol a desferir raios no asfalto e carros irritados apertando-se na estrada, trocando furiosos apitos e palavras ácidas. O condutor do seu táxi, sem muito se importar com a presença delicada da moça, mandava a sua parte de gritos para a rua. Branca, foi a primeira coisa que lhe chamavam em todo o lado, caso não suficiente para lhe tirar o sorriso e os bons-dias que distribuía sempre. Foram dois dias até ser apresentada nos rapazes interessantes e nas meninas que tinha que conhecer. Em breve já estava no circuito dos bares e da moda que se instalou de se sentar ao luar na praia, onde se acendia uma fogueira e charros. Conheceu a vida de todos em pouco tempo, os cornos, os cabrões, as putas. Rápido abandonou o circuito para se refugiar em bares menos povoados, lendo os livros que tinha que ler para o trabalho. Deixou de frequentar as praias por insistente assédio de tudo quanto era homem, que julgavam que moça linda assim, só na praia, precisava de conversa. Foi roubada duas vezes no apartamento que lhe calhou no meio de um casario informe, onde também faltava luz dia sim, dia não, não tinha água sempre e frequentemente arrebentava a fossa em frente. Mantinha o sorriso. Que terra não tem problemas, o próprio dela morria gente a toda hora de assalto e pessoas passavam a maior das dificuldades. Respondia sempre com grande sabedoria das ciências sociais, É um processo histórico, são dinâmicas de toda a sociedade e a vossa tem muitos aspectos positivos, É um país em paz, reconhecido no mundo todo, um exemplo em África.

Shiva
Tiraram-lhe dinheiro a mais da conta na última transacção da caixa automática, estava ela no balcão do banco pela quinta vez a tentar demonstrar que havia uma irregularidade, insistindo com o moço do balcão, que abanava compulsivamente a cabeça em não, que a irritava aquele abanar, mais explicava, mais o moço abanava negativamente a cabeça, mais a irritava. A menina de porcelana estraçalhou-se em cacos, de fúria contida, de acumulação de desaforo. No lugar do sorriso habitual suave, arreganhou os dentes, deitou fogo pelos olhos, de ruga fendida no meio da testa, descarregou a ira para cima do moço que, pobre, involuntariamente ouviu todo o tipo de considerações, sobre a incompetência dos serviços, a ineficácia dos horários e dos prazos, a péssima cara dos atendedores públicos, o atraso, a moleza e os demais defeitos, de como se arrependeu de um dia ter apanhado o avião para aqui, que regressaria imediatamente, que nunca mais voltaria, desejou venenos e infelicidades para o país, rasgou os modos de colégio, de mão na coxa e a outra em riste, arrebentou as costuras do decoro e da elegância. Depois desapareceu

1 comentário:

Mr.Guimarães disse...

Se continuarmos como estamos se calhar a maldita da "egípcia" também volta para a sua terrinha...