De Clara Andermatt, com Avelino Chantre e Sócrates Napoleão, CCP Praia, 14-09-2010.
Não fosse o (já repetente) atraso do Primeiro-Ministro a chegar ao teatro e algum excesso de ruído na sala, teria sido uma noite perfeita. Mas exceptuando essas duas notas deselegantes, foi um noite de encher os poros de poesia.
VOID, uma peça para mastigar, dada a quantidade de informação que passa e todas as interpretações possíveis. Uma temática que pode ser vista na direcção Praia-Lisboa, Lisboa-Praia, Mindelo-Lisboa ou S.Paulo-Tóquio. Questões de gerações, identitárias, ir e voltar, nascer e morrer, estar, simplesmente deixar-se estar num estado VOID. Morremos muitas vezes, repetia-se.
A peça, disseram-me, tem uma versão diferente de Lisboa, o que desconfiei pela quantidade de texto dito em crioulo e uma ou outra interjeição tipicamente daqui, que faz o público rir. Desconfio também que, dado que o público CV gosta de piadas, foram introduzidas algumas. Mas o efeito disso é o público achar que se trata de uma comédia e de surgirem risos em momentos inapropriados, cobrindo até o texto, que é uma componente muito forte da peça; não ouvi uma ou outra frase que quis ouvir.
Aos intérpretes, Avelino e Sócrates, parece que a peça foi criada para eles, para o seu percurso de vida, este ir e voltar constante do cabo-verdiano, para as suas memórias, a nostalgia de estar lá e uma experiência poetizada daqui. Para quem vive aqui, dá até um toque folclórico as saudades das coisas que já não existem, como a soleira da porta e as estórias da avó. Aos intérpretes, um regresso à terra, em apresentações em grande, Praia e Mindelo, Mindelact. Se calhar um recarregar de outras memórias e um actualizar da nostalgia.
À grade coreógrafa, Clara Andermatt, gosto particularmente da sua interpretação de nós. Ora vemo-nos ao espelho, ora vemos um nós possível. Outras vezes é tão somente a criadora, com todo o seu processador, passado e presente, que inventa-nos e o faz com muita graça.
VOID é um espectáculo de teatro, dança, música e literatura. É dirigida por uma coreógrafa, mas é criada conjuntamente pela coreógrafa e pelos intérpretes. Parece uma peça fácil de digerir mas não é; merece reflexão, rever, conversar, ler sobre, ouvir os outros, ter ideias e pô-las em causa. E está mais uma vez provado que, para a arte contemporânea, a técnica continua a valer muito, mas o que distingue uma obra de outra é a elaboração do seu conceito, o que dá imenso mais trabalho que o treino físico.
2 comentários:
Tive o prazer de assistir a VOID, embora eu não entendo muito de teatro mas adorei a atuacção deles, muito interessante, espetacular. Concordo que algumas vezes surgiram risos que pudessem cobrir o texto, mas outras vezes na minha opinião é que a voz deles soava muito baixo (poucas vezes). E pude perceber a satisfação do Sr. Schofield no final da peça com aplausos incansáveis, ve-se logo que é conhecedor da matéria. já agora queria dizer-lhe que gosto muito do seu Blog e desejo sucessos (criola de dja d´Sal).
Apraz-me saber que gosta do blog.
Vejo que esteve (está?) em Mindelo; aproxima-te e apresenta-te. Por vezes é gratificante materializar as amizades virtuais com uma boa conversa viva.
Sobre a peça: sim amei-a. A questão do entender e do não entender, não existe; na arte uma pessoa gosta ou deixa de gostar; defendo a arte como experiência emocional e não intelectual, embora a sua parte intelectual seja necessária à sua inovação. Mas sobretudo a arte deve permanecer emocional. Amei a peça, por já ter visto "Uma história da dúvida" da mesma coreógrafa, por a respeitar muito, por ter tido a emoção de ver 2 crioulos que atravessarem uma realidade dura (emigração) para se sagrarem com esta peça e também por reconhecer vários pontos que pessoalmente venho pensando e tentando abordar.
Viva o teatro! que esses dias deixo que arrebate totalmente.
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