Por hora e meia Marciano tinha estado mergulhado no livro, Pensamento Estratégico, de conhecido autor. Tirou a cabeça de fora e disse para a mulher, Mulher, vou ser presidente da república! A mulher, Luíza do nome, suspendeu o minúsculo pincel de frasco de verniz, tinha os dedos de um pé arreganhados por pequenas esponjas separadoras, enquanto iniciava a pintura do terceiro dedo do outro pé, com cuidado, exclamou seco, sem esforçar muito a expressão para não estalar a máscara de argila que lhe cobria a cara toda, O quê?! Vou ser presidente da república, repetiu em tom reconfirmante.
Ora, presidente da república seria o desfecho lógico de todo o seu percurso político e enquanto destacado membro da sociedade. Deputado da nação por vários anos, presidente da associação de pais na escola do seu filho menor, representante dos trabalhadores na sua empresa, dirigente desportivo, membro activo da campanha “dignidade aos gatos e cães de rua”, bom vizinho, amigo de todos, logo ambição natural. Achas que deva cortar o cabelo? A voz da mulher vinha da casa de banho ao lado, escorria água no lavatório. Luíza apareceu no quarto desmascarada e a sorrir. Preciso de roupas novas, vasculhou o guarda-roupa. Vais ser a primeira-dama mais bonita que este país já teve! Alegrava-lhe ver a mulher entusiasmada.
Apareceu no emprego de gravata, camisa e calças perfeitas. Cumprimentou a gente do trabalho, uma por uma. Ninguém deixou de comentar, ver, ou cochichar. Calmamente passou as mesas todas e foi se sentar no seu canto, triunfal. Pegou no telefone antes de qualquer expediente e fez questão que a conversa com o chefe do partido fosse audível. Compreendo, compreendo, repetiu quantas vezes, diminuindo a voz aos poucos. Fez uma cara séria por momentos depois de desligar, mas logo recompôs o sorriso inicial. Foi tomar o café diário no bar ao lado, não dispensando os apertos de mão generalizados. Constatou que lhe faltava material de campanha. Nessa noite desenhou e imprimiu, a rabugenta impressora, vários folhetos dizendo, candidato independente à presidência da república e enumerando os princípios básicos da sua candidatura. Recolheu no trabalho, na escola, no clube e em todo o lugar as assinaturas requeridas. Votarão em mim? Votaremos sim, claro. Enfeitou o carro de cartazes e seguiu convicto. Só não tinha calculado que tivesse que se deslocar a todas as ilhas de avião, facto que podia prejudicar a campanha. Fez fervorosos apelos pela rádio e pela televisão. Mandou e-mails, abriu um blog. Apesar das tendências apontaram para uma retumbante derrota, manteve-se crente até ao fim. O anúncio dos resultados finais da votação deu-lhe quinze votos. Calou a rádio e a televisão, nem a mulher, ou os filhos arriscavam tecer comentários. Ficou assim a noite toda a sede da sua campanha, a sua própria casa.
Apareceu no emprego de gravata, camisa e calças, igualmente perfeitas. Cumprimentou a cada um, não escondendo a tristeza. No entanto, tinha pegado o hábito de lhe chamar de senhor presidente, o que lhe soavam bem e o fazia sorrir de novo. Foi se sentar no seu canto, triunfal.
2 comentários:
DE O 15º VOTO
Prezado César. Gostei da postagem, que tem aleivosia e pinta de short-story. Estás com mão de cronista. Conheces José Luís Peixoto? Lê-o, meu caro. Acrescentaria à tua história a imperiosa necessidade de o teu protagonista, por razões mais existenciais que políticas, conhecer os tais catorze votantes, posto que décimo quinto voto seria o dele...naturalmente. Ter catorze amigos já era muito na parvónia.
Grande abraço a partir de Ouro Preto, MG.
Filinto Elísio
Obrigado pela informação. Já agora como está no ensino básico e complementar (é essa nomenclatura que se usa ainda?)
Já agora, e os nossos novíssimos poetas? Filinto, Arménio, José Luiz Tavares?...E José Saramago, António Lobo Antunes? Será que a igreja deixa?
Não percebi o "ler no imperativo"
Obrigado
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